Aparecido
Raimundo de Souza
O CHINFRETA SE ABRE com o doutor
Sartório, seu amigo e advogado. Ambos tomam café no escritório do profissional
enquanto papeiam:
— Não podemos mais viver juntos. Eu
tenho defeitos terríveis e Carol qualidades insuportáveis. Daí eu querer me
separar dela.
— Fale de seus defeitos — pede o
doutor Sartório:
— São tantos...
— Sou todo ouvidos, Chinfreta...
— Eu gosto de soltar bufões na
frente de todo mundo. Principalmente das amigas dela.
— E dona Carol, por certo, acha suas
ideias absurdas?
— Se não as ideias, pelo menos os
traques, com toda certeza.
— Costuma dar bronca?
— Às vezes reza um terço. Doutras
diz na minha lata que eu sou um verme.
— Verme, Chinfreta?
— Sim, Sartório. Desses bem
peçonhentos. Imagine!
— O que mais você faz que deixa a
sua querida esposa irritada?
— Nossa, a lista é imensa!
— Como disse, sou todo ouvidos:
— Gosto de ir ao banheiro de porta
aberta.
— De porta aberta?
— É.
— E Carol, só de me ver indo em
direção ao banheiro, aos trancos e barrancos —, pense —, só de me ver... Começa
a falar. E fala, fala, fala...
— E você?
— To nem ai! Assovio. As palavras
dela entram por um ouvido e...
— Voam pelo outro?
— Não exatamente...
— Como assim, não exatamente?
— Um de meus ouvidos, Sartório, é
completamente surdo. Se não me engano, surdo do tímpano:
— Como é que é?
— Um dos meus ouvidos não escuta.
— Então você é obsoleto de um lado?
— Sou.
— Qual deles?
— Acho que o esquerdo. Não, o
direito. Não faz diferença. Sei que um e completamente alérgico à barulhos e
sons.
— E do que a sua esposa tanto
reclama?
— No geral, que eu preciso ter
modos. Criar vergonha. Parar de andar pelado pela casa. A Soraia não é obrigada
a me ver com os países baixos balançando. Ainda mais em estado de extrema
sonolência...
— Calma lá. Quem é a Soraia?
— A nossa empregada.
— Ah! Continue...
— Fala também que eu preciso
respeitar dona Risoleta, a mamãe...
— A sua mãe?
— Não, Sartório. A dela:
— Sua sogra?
— Em carne e presença. A velha mora
com a gente. Está cansada de me pilhar entrando e saindo de um armário enorme,
de doze portas, que a gente tem lá em casa. Mentalize a cena...
— Como é que é?
— Eu disse que a velha mãe dela, dona
Risoleta está cansada de me ver entrando
e saindo de um armário de doze portas. Tal atitude deixa a sessentona com a
pulga atrás da orelha.
— Meu amigo, uma pergunta um tanto
quanto idiota: você não tem mulher?
— Tenho.
— E por que precisa partir para
dentro do armário?
— Sartório, não ajuíze nenhuma
besteira. Não é nada do que você está alinhando nesta sua mente suja. Gosto de
ficar lá dentro, no escurinho, geralmente jogando dominó ou paciência pelo
celular. Para mim, uma terapia, ou válvula de escape que arrumei para me livrar
dos estresses do dia a dia.
— E onde fica este armário que a sua
sogra o vê entrando e saindo?
— Ora, Sartório, no nosso quarto de
casal. A velha mãe dela assim que eu me acomodo, vem quietinha, entra, pé ante
pé... E encosta o ouvido...
— Entendo. E a sua esposa?
— Como você sabe, a Carol dá aulas.
Fica o dia inteiro fora. Como a jararaca da mãe dela não trabalha, não têm
amigas, nem marido... E como eu chego do serviço por volta de três horas, tomo
banho, faço um lanche, vou pro meu quarto e aproveito para jogar partidas com
meus amigos virtuais. Em resumo, a Carol não tem conhecimento das minhas
loucuras.
— E a sua sogra, como ela descobriu
a sua paixão pelos fundilhos do suntuoso armário?
— Como falei, a peste da velha fica
me espionando, assim que piso no quarto. Então ela se achega e coloca o ouvido
encostado na peça. Pior de tudo...
— Continue... O que é pior de tudo?
— A Soraia também vem lá da cozinha,
só para tentar descobrir o que, de fato, eu ando fazendo entre as minhas roupas
dependuradas e as de minha esposa.
— Não acredito no que estou
ouvindo...
— Pode acreditar. É a mais pura
verdade.
— Acho que você é louco.
— Eu tenho certeza...
— E ai, com as duas mulheres
bisbilhotando, que atitude você toma?
— Nenhuma. Continuo na minha,
jogando sem maiores problemas.
— Realmente cheguei à conclusão que
você não bate bem da bola.
— Qual o quê! Você me chama de louco
e diz que não regulo bem da cachola. Piradona, diante desta história toda é a
minha sogra.
— Por quê?
— Porque a velhota acima de qualquer
coisa, me odeia. Dona Risoleta anda querendo pegar alguma coisa errada a meu
respeito. Por assim, nas suas divagações, me persegue. E pasme, Sartório. A
infeliz, costuma logo que se aproxima do armário, a emitir uns gritinhos
estranhos, e a empregada endossa, indo na pilha dela, como se imaginassem que
eu esteja fazendo alguma coisa indevida, sei lá. Cansei de ver. Por uma espécie
de respiradouro redondinho do móvel, capturo as duas e dou com as engraçadinhas
alvoroçadas. Jogar dominó com plateia é outra coisa. Você por acaso, como
advogado, já pensou em uma cliente aqui nesta sala, falando mal do marido e, em
vista da sua posição, você tentar consolar a dita dando carinhos e jogando
palavras melosas no escutador de novela dela?
— Não interessa Chinfreta. Tal fato
não vem ao caso. Não vou responder...
— Pela sua reação abrupta, percebo
que é chegado...
— Olha o respeito. A Soraia... Você
disse que ela também espia?
— Sim.
— E você nunca teve coragem de
inverter a situação saindo do armário na hora agá e dando um chega pra lá nas
duas? De certa forma vejo a sua situação como invasão de privacidade.
— Sartório, até o momento não havia
pensando em nada. Pelo menos até sábado passado, quando tudo aconteceu...
— E o que aconteceu sábado passado?
— De novo? É a centésima vez que lhe
conto a droga da história.
— Conte uma vez mais. Preciso saber
dos mínimos detalhes para defender você, caso dona Carol realmente tome
conhecimento pela mãe, ou pela serviçal, da sua imbecilidade e queira se
separar.
— Ta legal. Eu liguei o aparelho
celular e dois minutos depois a velhota pintou na área:
— Prossiga...
— A Soraia, como sempre, veio logo
no vácuo. Ambas, acredito, se agarraram ao armário, como se quisessem
abraçá-lo. Em outras palavras, como se o troço fosse um homem. É o que penso
das duas, em razão de acharem que eu faço algo abominável. O fato é que a
geringonça começou a balançar, apesar de abarrotado de bugigangas. Minha sogra,
a certa altura, passou a balbuciar: ‘Fernandinho, Fernandinho, ai, ui, ai,
ui...’.
— Fernandinho? Quem é Fernandinho?
— Sei lá, Sartório! Não faço a menor
ideia.
— Vá em frente.
— Só que desta vez, a Soraia vendo a
velha Risoleta, se excedeu. Não aguentou. Meteu as mãos no puxador e escancarou
a porta do armário de canto a canto. Dona Risoleta, minha sogra, ficou pálida,
se abriu em berros estridentes, ferozes, e a empregada não deixou por menos...
— Sim e depois?
— Quando as duas fuxiqueiras toparam
comigo, Sartório, eu estava suando em bicas e meu Deus, eu literalmente
beijava, na boca, o Pimpão.
— Maldição, Chinfreta! Que diabo
venha ser o Pimpão?
— Meu ursinho cor de rosa, que até
então eu guardava a sete chaves...
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 15-9-2020
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