quarta-feira, 17 de julho de 2024

O diabo do outro lado

Luís Naves


As democracias baseavam-se no princípio de alternância, mas isso já não é assim. Através do controlo dos meios de comunicação, os regimes ditos liberais limitam os poderes tolerados. Os votos não pesam todos o mesmo, o que impede a renovação e aumenta o cinismo dos eleitores. Sem alternância, as democracias têm um ar de farsa. A impossibilidade de mudar cria a estagnação pantanosa que, por seu lado, encolhe ainda mais as opções políticas. Isto está a suceder em várias democracias ocidentais, onde se estabelecem climas de paranoia ou impasse, levando à diabolização daqueles que pretendem alterar o sistema, radicalizados pelo ostracismo e pela frustração de tudo ficar sempre na mesma.

Enquanto o povo quer mudança, as elites convenceram-se de que não existe povo. A frustração dos eleitores não tem a ver com os problemas das classes populares (na visão superior, estas não existem), mas com a incompreensão dos altos valores burgueses. Segundo esta ideia, a exclusão justifica-se e a política passa a ser um caso de bem contra o mal. A comunicação social participa alegremente e deixou de fazer perguntas.

A globalização, a grande recessão, a pandemia e a guerra da Ucrânia tiveram terríveis consequências na vida de milhões de cidadãos dos países ocidentais, mas o sistema político e mediático recusa-se a reconhecer o aumento das desigualdades e o abandono das classes trabalhadoras. Tornou-se uma impossibilidade contestar a ortodoxia ocidental, apesar desta mostrar crescentes fissuras. Quem o fizer, recebe os piores rótulos, perde amigos, não publica, será insultado e socialmente ostracizado. As liberdades estão a encolher.

Perante a revolta eleitoral popular, as elites exibem crescentes sinais de pânico. Falar de paz na Ucrânia, por exemplo, merece o anátema, é como invocar demónios. O massacre deve continuar até ao último ucraniano. Nunca até hoje compreendi a frase de Jesus Cristo em Mateus 5,9: “Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. A sabedoria parecia-me demasiado óbvia, mas agora entendo que a paz é das coisas mais difíceis de conseguir e mesmo pessoas razoáveis podem ser contra ela. Há sempre argumentos, não é oportuna, beneficia o infrator, perturba os equilíbrios mundiais. Claro que ninguém fala nos interesses que justificam a continuação da guerra, são sempre a moral e os altos valores que a justificam. Nunca é o dinheiro ou a hipocrisia, há sempre o diabo no outro lado.

Título e Texto: Luís Naves, Delito de Opinião, 17-7-2024

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