quinta-feira, 18 de julho de 2024

O novo ouro do Brasil


Nuno Palma

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Hoje, os fundos de coesão per capita recebidos por Portugal estão entre os mais altos de todos os Estados Membros. Durante o período 2024-2020 atingiram cerca de 380 euros por pessoa e por ano, em preços correntes, para as zonas menos desenvolvidas do país, um valor apenas próximo do que receberam as zonas equivalentes de alguns países ex-comunistas. Este valor compara com uma média de menos de um terço – 112 euros por pessoa – entre todos os Estados Membros para o mesmo período.

Países como a Romênia ou a Bulgária apenas receberam 150 euros por pessoa. Os fundos de coesão correspondem apenas a uma média de 0,3% do PIB da EU como um todo, uma proporção quase dez vezes inferior à portuguesa. Aliás, a própria Comissão Europeia reconhece que, para algumas das zonas mais pobres de Portugal, como é o caso dos Açores, o valor é quase 12 vezes maior – atingindo cerca de 3,5% do PIB por ano.

Uma análise detalhada, e sub-regional mostra que todas as regiões de Portugal (incluindo Lisboa e o Algarve, ainda que com um pouco de menor intensidade), recebem uma quantidade de fundos europeus apenas comparável aos recebidos por regiões da Europa do Leste.

A ideia de que é possível impor “a partir de cima” igualdade entre todos os países ou mesmo regiões da EU é uma visão utópica, e é bem possível que esta lógica que determina a distribuição dos fundos esteja a contribuir, pelo contrário, para aprofundar o atraso relativo de certas regiões e Estados Membros mais pobres – e também, por essa via, da própria União Europeia no seu todo relativamente a outras partes do mundo.

Globalmente, e tomando todos os períodos desde meados dos anos 1980 em consideração, Portugal foi certamente um dos países da EU que mais receberam quantias provenientes destes fundos relativamente ao tamanho da sua economia. É também, juntamente com a Grécia, o país que há mais tempo deles depende.

Comparem-se os valores que mencionei com os das chegadas de ouro do Brasil no século XVIII, que corresponderam a 4 a 6% do PIB nominal por ano, entre 1720 e a década de 1760, declinando a partir de então, até ficar por 1% em finais do século.

Nessa época, esses montantes foram o suficiente para condenar a economia e o sistema político a uma trajetória perniciosa com consequências para o atraso que ainda hoje sentimos. Tal como nessa época, as chegadas de fundos não representam hoje proporções anuais esmagadoras, mas vão tendo efeitos ao longo do tempo, até devido a não terem, na prática, grandes contrapartidas. Distorcem a economia e o sistema político, com graves consequências a prazo. São o novo ouro do Brasil.

Os fundos europeus enviados para Portugal têm claramente falhado no seu objetivo primordial: a convergência com a Europa mais desenvolvida. À medida que vários países – ou, para ser mais rigoroso, regiões europeias – se aproximaram dos níveis médios de desenvolvimento da União Europeia, têm perdido o direito a receber estes fundos. Portugal é uma espécie de país pedinte, e viciado, que continua a receber esmolas décadas depois, porque nunca deixou de ser pobre – tendo recebido mais e por mais tempo do que os outros.

Perversamente, quase parece que este país dependente gosta de continuar a sê-lo, tal é o endeusamento a que o discurso público eleva os dinheiros europeus. Isto é verdade tanto relativamente aos fundos regulares – que têm, de resto, categorias variadas, incluindo fundos de desenvolvimento regional, o fundo social europeu, fundos de coesão, bem como fundos agrícolas e relacionados com as pescas – como aos de emergência, como é o caso do PRR, apelidado em Portugal de “bazuca”: a chuva de milhões que tantos disseram que nos iria salvar. 

Desde o princípio que me mostrei cético. Até porque me recuso a esquecer a nossa História: os fundos europeus não passam do ouro do Brasil dos dias de hoje.

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Na prática, a EU subsidia Portugal por ser mau aluno, dando dinheiro que anestesia a economia e distorce o processo político. A torneira aberta financia alguns investimentos e consumo, permitindo transmitir a ideia de que a situação do país não é tão grave como é, enquanto impede um debate sério sobre a verdadeira situação do país.

O fim dos fundos iria implicar um confronto com a dura realidade existente, que teria implicações políticas sérias e disruptivas para a atmosfera cultural e intelectual do país. Sem os fundos, o edifício político e ideológico que nos rodeia cairia que nem um castelo de cartas, com implicações sérias para o regime e os partidos que têm governado o país.

Se, no imediato, levaria certamente a uma crise, esse fim também seria o incentivo certo para abrir o caminho para serem feitas verdadeiras reformas.

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Título e Texto: Nuno Palma, in “As causas do atraso português”, páginas 258 a 261
Digitação: JP, 18-7-2024

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