Nuno Palma
(...)
Como referi, a escravatura de
negros vindos de África, e em particular de Angola, não só era aceite, como
era, à época, vista como fundamental para o desenvolvimento do Brasil. Por
contraste, no Brasil, a Coroa e os jesuítas tentaram frequentemente proteger as
populações nativas para que não fossem massacradas ou escravizadas, tendo-se
tornado, por isso mesmo, alvo de frequentes protestos das elites locais.
E os esforços de conversão dos
missionários Cristãos fora da Europa, aliás, variaram muito em função das
características de cada região. Em 1826, o Brasil, já independente, assinou um
Tratado com o Reino Unido em que prometia suprimir completamente o tráfico de
escravos.
Esse Tratado foi, na verdade,
letra morta, dando origem à expressão “para inglês ver”. As próprias
autoridades brasileiras não aplicaram a legislação e mais de um milhão de
escravos africanos entraram no Brasil já depois da independência, em condições
que não teriam sido melhores que as do século anterior.
Mas caso a escravatura fosse
fonte de riqueza para países, então Portugal e o Brasil seriam os países mais
ricos do mundo em épocas presentes e passadas, já que foram dos países mais
estiveram envolvidos nesse tráfico.
Além disso, o que sabemos é
que o tráfico de escravos, e de forma mais genérica a dependência do Brasil
face à escravatura, acabaram por ser um entrave ao seu desenvolvimento global a
prazo, sem prejuízo de ter enriquecido algumas elites mercantis que não eram
representativas do país.
Frequentemente ouvimos
declarações segundo as quais, por exemplo, o Brasil tem “vergonha das suas
origens portuguesas”.
Para além de várias acusações, nomeadamente sobre o comércio de escravos e o suposto “roubo” do ouro trazido para Portugal, um dos pontos de vista amplamente difundidos é o de que, se o Brasil tivesse sido colonizado pelos holandeses, a situação seria hoje muito melhor. No entanto, basta olhar para o atual nível de desenvolvimento do Suriname, um país que faz fronteira com o norte do Brasil e onde o domínio colonial neerlandês se exerceu durante séculos, para nos apercebermos de que essa ideia está longe de fazer sentido. Na verdade, o Suriname até é hoje um país menos desenvolvido do que o Brasil.
Poder-se-á argumentar que não
foi tão importante para os holandeses como o Brasil terá sido para Portugal,
tendo em conta, entre outros fatores, a dimensão muito diferente dos
territórios. Mas veja-se também o que se passou noutras regiões do mundo, como
a Indonésia, onde a colonização neerlandesa foi bastante extrativa, mesmo
durante o século XIX.
Um estudo recente de História
econômica sobre a ilha de Java mostra que, na década de 1850, quando as
transferências líquidas das chamadas “Índias Orientais” para os Países Baixos –
conhecidas como batig slot – atingiram o seu auge, elas representaram
quase 4% do Produto Interno Bruto neerlandês e mais de 50% da receita total do
governo. Apesar disso, e mesmo considerando que nas discussões sobre estas
questões é fundamental ter em mente fatos básicos como os que acabei de
mencionar, há que reconhecer também que Portugal transmitiu ao Brasil um
projeto institucional de qualidade inferior àquele que a Inglaterra, por
exemplo, deixou nos Estados Unidos.
É crucial desenvolver um pouco
este tópico porque encontram-se aqui algumas das principais razões que explicam
as diferenças de evolução e de crescimento observadas, não só no interior do
continente americano, mas mesmo a nível mundial. Aliás, tal como na origem de
vários dos mal-entendidos que se encontram espalhados a este respeito.
A decadência das instituições
políticas em Portugal acentuou-se a partir do final do século XVII. Esta
decadência foi o resultado das enormes remessas de ouro que, entretanto, a
partir da década de 1690, começaram a chegar do Brasil, e que, em Portugal,
tiveram profundos efeitos negativos, não só para as instituições políticas,
como também, de forma mais direta, para a economia.
Esta ligação pode parecer, à
primeira vista, paradoxal, mas explica-se por que as enormes quantidades de
ouro recebidas distorceram, por um lado a economia – favorecendo as importações
e prejudicando, externamente, o setor industrial transacionável –, e, por outro
lado, contribuíram para que a Coroa considerasse que teria receitas suficientes
para não precisar de convocar as Cortes.
Uma das consequências foi o
facto de as Cortes terem deixado de se reunir ao longo de todo o século XVIII,
ao contrário do que tinha acontecido nos séculos anteriores. Isso levou a que a
economia e as instituições políticas portuguesas tivessem sofrido, durante esse
século, um processo de degradação semelhante ao que havia acontecido em Espanha
mais de 100 anos antes. Mais direi sobre estas matérias no Capítulo 6, mas para
a discussão presente o que importa compreender é que este processo de
degradação econômica e política influenciou o tipo de instituições que surgiram
em toda a América Latina e, portanto, obviamente, também no Brasil.
Foram essas instituições –
cujas características básicas persistiram ao longo do século XIX, apesar das
mudanças políticas que vieram a existir – que condicionaram, assim, o sistema institucional
que aí foi implantado.
No fundo, o que está em causa
é um problema de Maldição dos Recursos, com consequências profundas no destino
da própria América Latina. Em contrapartida, na América do Norte o processo foi
completamente diferente, até por não existirem minas de ouro e prata, e, como
tal, foi necessário desde o primeiro momento que os governos locais fossem
financiados pelos próprios colonos. Isto obrigou os governadores coloniais a
recorrerem dede cedo a assembleias locais.
A Inglaterra e as suas
colônias na América do Norte não tinham sofrido de uma Maldição dos Recursos, e
quando foi descoberto ouro na Califórnia, em meados do século XIX, este nunca
se tornou central para os Estados Unidos da América, tendo então já as suas
instituições também uma grande robustez política.
Em conclusão, pode dizer-se
que, contrariamente a uma ideia bastante difundida, a descoberta do ouro no
Brasil e o seu envio para Portugal não conduziram, a prazo, a um “enriquecimento”
do país. Pelo contrário, conduziram antes ao início de um caminho progressivo
de real empobrecimento que se acentuou no século XIX e que acabou até por ter implicações
na qualidade das instituições criadas, não só em Portugal como no próprio
Brasil, com consequências que duram até aos dias de hoje.
Digitação: JP, 13-7-2024
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