Carina Bratt
NA PEQUENA E DÓCIL Santa Godofreda da Canoa Furada, morava com seus avós, uma menina de treze anos chamada Ellen. Ela tinha os cabelos vermelhos e cacheados e os olhos astutos e curiosos. Vivia solitária, sem ter com quem conversar ou brincar. Somente na escola, na hora do recreio, uma ou outra coleguinha da mesma idade, às vezes se achegava para um bate papo que terminava dez ou doze minutos depois. O mesmo acontecia com a Nica, a filha do dono da padaria. Apesar de dois anos à frente, os papos não iam além de uma conversa de dez ou vinte minutos. Em face da cidadezinha não ser de extensão grandiosa, todos se conheciam, mas pouco as pessoas se relacionavam. No mais, as ruas viviam vazias. A praça do coreto, em frente à igreja largada às moscas e aos moradores de rua.
Como toda criança sem amizade, Ellen tinha um segredo que guardava à sete chaves. Ninguém sabia dele, como, igualmente, criatura alguma desconfiava que ela, de aparência bucolicamente infantil, meio desligada, se transformara na autora de uma brincadeira infeliz e perigosa, além de colocar a vida das pessoas envolvidas em sério risco. Ellen adorava passar trotes pelo telefone. Tudo começou quando, por mero acaso, a espevitada encontrou um velho telefone antigo (desses de disco), no sótão da casa onde morava com seus avós. Ficou fascinada com o aparelho e decidiu testá-lo. Ao acaso, discou um número aleatório. A geringonça funcionava. Quando alguém atendeu, do outro lado e declarou que não reconhecia a voz, nem o número de onde provinha a chamada, Ellen teve uma ideia meio biruta, ou melhor, totalmente sem graça.
Ligou para outros números e a resposta a mesma. Descobriu que a linha não se constituía no mesmo que ficava na sala. Os terminais se faziam totalmente diferentes. Uma dúvida aflorou. Por qual motivo seu avô mantinha um número secreto esquecido num lugar de difícil acesso e horrivelmente imundo? Não conseguiu resistir. Havia achado uma diversão. Ligou para o banco e solicitou que o gerente fosse chamado. Quando o homem atendeu, Ellen Inventou uma história mirabolante. Ventilou que uma quadrilha de bandidos vinda da capital, invadiria a agencia. Os meliantes estavam acampados numa mata fechada que circundava a cidadela. Esperavam a hora certa para entrar em ação e causar o maior transtorno. O gerente, assustado, inquiriu quem falava e o motivo de não ver o número.
Naquele tempo não havia bina (identificador de chamadas) e a ligação se fez incógnita. Apesar disso, por precaução, o gerente chamou a polícia. O delegado, rapidamente se armou em uma possante e bem montada diligencia com todo seu efetivo. Programou um cerco, o que redundou em um tremendo fiasco. Dia após dia, as vítimas dos trotes variavam: um dia o padre, noutro, a diretora da escola onde ela estudava. À tarde, passava pelo carteiro e pelo farmacêutico. Nem o barbeiro escapou. Ellen ria baixinho, se divertia, enquanto ouvia as reações surpresas e confusas do outro lado da linha. Ela nunca se identificava, obviamente, deixando todos intrigados sobre de quem poderia ser aquela voz misteriosa e de onde provinha a chamada. Um dia, Ellen decidiu passar um trote diferente.
Ligou para a casa do seu Antônio, um idoso amigo de seus avós. O antigo, de oitenta anos, morava sozinho com uma cuidadora mantida pela igreja e sobrevivia à custa de doações alheias vindas diretamente dos moradores. A menina fingiu ser de uma agencia de viagem da capital, e sustentou a tese de que ele, o premiado, havia ganho uma viagem com tudo pago para Porto das Galinhas, no Estado de Pernambuco. Seu Antônio ficou tão emocionado que começou a chorar de alegria. Teve, todavia, logo depois, um piripaque e acabou indo parar na unidade hospitalar quando descobriu a ‘engazopação.’ Ellen tomou conhecimento desse evento, quando a sua avó a mandou ir até a padaria. Nica, a sua amiguinha e filha do seu Ditinho, proprietário do estabelecimento.
Assustadíssima, Nica contou o ocorrido e Ellen se compadeceu pelo que havia feito. Sabia que aquele tipo de brincadeira poderia, mais hoje, mais amanhã, causar grandes transtornos. No pior dos mundos, no caso do seu Antônio, o longevo poderia ter chegado à óbito. Se tal ocorresse certamente ela teria grandes problemas com seus avós, e, logicamente, eles, com a polícia. Pensando nessa possibilidade, sentiu um aperto forte no coração e esqueceu imediatamente do telefone. Naquela noite, porém, seu nervosismo não lhe deixou que pregasse os olhos. Pensou em seu Antônio e em como a sua brincadeira sem graça poderia ter machucado não só ele, como, de fato, por pouco, não lhe tirado a vida. Tinha conhecimento que se continuasse, prejudicaria outros inocentes.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha no Espírito Santo, 21-7-2024
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