terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Choque de realidades

Americanos começam a viajar para Cuba e constatam que a situação da ilha é pior do que pensavam.
Francisco Vianna
Por mais de 40 anos o turismo estadunidense em Cuba esteve bloqueado por uma proibição de se viajar à ilha por parte de Washington que vigora desde a década de 1960. Basicamente, o fato impediu que Havana faturasse os dólares de americanos dispostos a gastá-los numa das ilhas mais fascinantes e atraentes do mundo em termos de belezas naturais.

Durante esse tempo, raros norte-americanos conseguiram saborear a exótica cozinha insular, que combina o alho, o cominho, e o orégano em seus temperos das empadas cubanas, ou desfrutar o café da ilha que não difere em nada do brasileiro.

Com a flexibilização tanto por parte de Havana quanto por parte do governo Obama, 2013 foi um ano que, de fato, muitos cubano-americanos puderam visitar a ilha, bem como alguns insulares puderam ir à Flórida visitar seus parentes.

Entre os estadunidenses que foram a Cuba, muitos eram estudantes de 17 a 21 anos, integrantes de programas de estudo e pesquisas escolares e universitárias. Essa moçada teve oportunidade de interagir com botânicos, professores e médicos da ilha e ver de perto a relação custo-benefício do sistema social (político e econômico) implantado na ilha desde a deposição do antigo ditador Fulgencio Batista. Isso teve uma importância ímpar na carreira desses estudantes que chegaram ao país caribenho fazendo uma ideia do que se passava na ilha bem diferente do que ocorre na realidade.

A experiência desses visitantes estadunidenses ajudou a desfazer mitos e a corrigir algumas noções errôneas que os jovens tinham sobre o suposto “ódio dos cubanos aos EUA”, entre outras ideias plantadas pela propaganda marxista. “Não imaginava que os cubanos pudessem ou estivessem dispostos a falar e interagir conosco, mas a quase totalidade deles se mostravam felizes de fazê-lo”, era o comentário geral entre os visitantes do norte. “Creio que o simples ato de falar livremente conosco dava aos locais a sensação de que as coisas pudessem estar mudando por lá; e mudança é o grande anseio que qualquer estrangeiro sente da parte deles”.

As dificuldades que esses visitantes encontraram foram as mesmas que os cubanos enfrentam todos os dias, com a vantagem de terem dólares para gastar – o que pareciam ser milionários para os locais – e a desvantagem de que a grande maioria deles não falava o espanhol, o que os deixava um tanto perdidos em Havana.

Um grupo, no entanto, ficou muito surpreso quando uma família local dele se aproximou falando em inglês e em questão de minutos estavam numa conversa interminável sobre a sua vida diária na ilha. “Falaram de sua cultura, dos locais onde trabalham, das escolas frequentadas por seus filhos, e demonstraram sempre a preocupação de que nós, visitantes, pudéssemos desfrutar da parte que julgavam boa de seu país, as belezas naturais”, relatou um dos membros desse grupo. Esse grupo de estudantes viajou sob os auspícios do programa “BreakAways” (vencendo barreiras) do Colégio Illinois, uma universidade de artes liberais de Jacksonville, numa excursão à Cuba sob a chefia de professores como programa de férias da instituição estadunidense de ensino.

O programa visa levar ao estudante a condição de desenvolver uma perspectiva diferente sobre como o mundo funciona, segundo Steven Gardner, um professor de espanhol e um dos organizadores da viagem. “Ora, Cuba está a apenas 90 milhas (145 km) dos EUA, mas, provavelmente, é a cultura que menos os norte-americanos conhecem, devido a décadas de isolamento social. O que nós sabemos da ilha vem sempre com um forte teor ideológico e político de ambos os países”, acrescentou. “Achamos que seria importante deixar que nossos estudantes conhecessem de perto a pobre sociedade cubana e assim pudessem tirar suas conclusões livremente a partir de uma vivência real e sem interferência de terceiros”.

Para tanto, os estudantes estiveram observando o sistema de saúde local, visitando consultórios médicos e hospitais. Estiveram também em creches e escolas para sentir a que ponto ia o cuidado com as crianças e adolescentes em Havana. “Infelizmente”, disseram, “o turismo em Cuba ainda é orientado pelo estado e o turista não pode viajar livremente pela ilha, mas se ater a roteiros pré-estabelecidos, o que ainda dificulta se ter uma noção da realidade de cidades e vilas do interior”.

A viagem, por outro lado, teve a intenção de dar aos estudantes a oportunidade de estudar temas relacionados com suas metas profissionais e poder comparar o que aprenderam com suas próprias realidades, além de melhorar seus níveis de cultura geral, o que tem sido um problema sensível nos EUA. “Os americanos têm vivido voltados quase que exclusivamente para o seu próprio país e pouco têm se interessado no que ocorre no resto do mundo, principalmente quanto à juventude atual”, explicou um professor.

A psicopedagoga do grupo, a Dra. Rellinger-Zettler, disse que “do ponto de vista psicológico, Cuba tem uma cultura muito interessante para os americanos pelo fato de não só apresentar diferenças com relação à vida familiar e entre suas identidades culturais como também por sua política de estado de oferecer educação e atenção à saúde a todas as pessoas do povo, embora tal meta esteja longe de ser atingida satisfatória e dignamente”.

O nível de pobreza encontrado em Havana foi comparável ao existente em Porto Príncipe, a capital do Haiti. Pouquíssimas pessoas têm carros e, a miúdo, a espera por um táxi ou um transporte coletivo – sempre apinhado de gente – pode levar horas, o que dificulta uma simples ida ao supermercado. A atenção médica, digamos ‘trivial’, é, no entanto satisfatória para todos. A coisa se complica quando o caso sai da ‘trivialidade’ e o atendimento ainda deixa muito a desejar para os casos de idosos aposentados. 

“De qualquer modo, os estudantes puderam avaliar um sistema de saúde que, com todas as deficiências às quais não estão acostumados, mesmo assim funciona com recursos limitados”, afirmou o professor Gardner.

Os estudantes americanos comiam pratos típicos em restaurantes administrados pelo estado. De vez em quando iam comer nos “paladares”, como se chamam os restaurantes que funcionam em casas particulares, e pagos em dólares, naturalmente, o que os tornam fora do alcance da maioria da população.

O que se fartaram de ver em Cuba foi a quantidade de músicos e artistas que atuam em troca de gorjetas. “Em quase todos os restaurantes havia alguém que tocava bongôs, cantava e dançava a salsa ou a rumba”, disse um professor. Até hoje os estudantes têm dúvidas quanto à autenticidade da alegria exibida por muitos cubanos e não sabem ainda se ela é a manifestação de um sentimento autêntico ou uma espécie de disfarce ou alter ego exibido para esconder uma dura realidade... 

Com a volta do grupo aos EUA, ficou a certeza por parte do corpo docente que a viagem foi muito proveitosa para mudar a forma de ver a vida dos estudantes. “Essa mudança de visão tem o efeito de provocar no estudante uma valorização de toda a riqueza que dispõem e que corriqueiramente estavam acostumados a não dar a devida importância. Mas a grande lição fica por conta da certeza evidente de que um país não pode ter tudo o que os americanos têm por via de construção, geração e distribuição de riqueza através do estado”, completou.

Todos parecem, por outro lado, ter voltado às suas casas com uma forte convicção: a de que não viveriam num país como Cuba...
Título e Texto: Francisco Vianna, 04-02-2014

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