Jacinto Flecha
Um iracundo leitor da
minha última crônica (Governando por provérbios) reagiu com pedradas violentas às minhas flechadas
inofensivas: “Como ousa qualificar de vaca uma distinta senhora que
tanto se dedica ao bem do País? Seria melhor recolher-se à sua insignificância
e deixar que outros cuidem do povo, sem ligar para interesses mesquinhos de
invejosos”.
Surpreendido por acusação tão
injustificável, durante bons minutos permaneci aturdido, desnorteado,
embargado, confundido, embaraçado, paralisado, atordoado, assustado,
desfalecido, estonteado, perturbado, assombrado, atônito, tremebundo,
espantado, estatelado. Desculpe-me, leitor, a insistência em tantas palavras
com sentidos correlatos. Achei indispensável apelar para a variedade, ante a
minha suspeita de que o referido leitor não entende o que lê.
Depois que consegui sair do
letargo, entorpecimento, paralisia, emudecimento, estupor, torpor, marasmo,
assombro, espanto, atonia em que me encontrava, dediquei-me a investigar o
motivo de acusação tão infundada, descabida, desconexa, desmotivada, insensata,
incoerente, disparatada, desarrazoada, absurda, irrefletida, impensada,
inconsiderada. Não foi difícil encontrar a única frase onde eu havia mencionado
VACA. Ei-la: “A vaca foi pro brejo”.
Esse meu leitor iracundo,
malévolo, intrigante, colérico, enfurecido, malquerente, raivoso, furioso,
furibundo, mal-intencionado, irascível, além de tudo isso parece também
inculto, iletrado, néscio, inepto, singelo, tosco, ignorante, insensato,
estulto, atoleimado, aparvalhado, simplório, bronco, párvulo, pois qualquer
pessoa de mediana cultura sabe o significado da frase onde entrou a vaca.
Os pecuaristas precisam estar
de olho no gado, para ele não enveredar por caminhos perigosos; um dos quais é
o do brejo, pois pode acarretar perda total. A tal ponto isso é conhecido, que
tornou-se advertência muito usada na linguagem popular. Fique portanto
tranquilo esse leitor, pois a vaca à qual me referi é genérica, não tive em
mira nenhuma vaca especificamente. Se ele quiser fazer aplicação específica,
basta observar o que vem acontecendo com o nosso País. Encontrando alguma vaca
a conduzir o rebanho pro brejo, peço que me informe.
Já que o meu leitor iracundo
se deu o trabalho de alertar-me para o perigo de metáforas sobre animais,
faço-lhe notar que a minha crônica continha outras referências do gênero. Por
exemplo:Para burro enfeitado não faltam noivas; bater na cangalha pra
burro entender. Talvez ele tenha imaginado aplicações específicas
nestes casos, mas preferiu não externá-las. Acho até razoável a omissão, pois
um político se referiu a outro como burro, e recebeu a seguinte advertência: “Você
pode dizer que ele é inculto, néscio, iletrado, ignorante, incompetente, mas
burro ele não é”. Talvez o leitor iracundo tenha reservado uma
segunda etapa de apedrejamento para mim, pela referência ao burro. Neste caso,
considere a advertência citada acima como antecipação da minha resposta.
Expressões como as que usei
permeiam a linguagem popular, enriquecendo-a em todos os países. Quando li pela
primeira vez o Dom Quixote no original castelhano, notei que a maioria dos
provérbios colocados por Cervantes na boca de Sancho Pança são praticamente os
mesmos de Portugal e Brasil, e muitos provérbios franceses e ingleses têm também
o mesmo teor. É certo que isto ocorre também nos outros países, pois a vida
predominantemente pastoril de antigamente deparava em todos os lugares com
problemas semelhantes. E a placidez da vida bucólica possibilitava elucubrar
advertências, ditados e outras formas sintéticas de linguagem, cujo conteúdo
guarda por isso tantas semelhanças.
O significado ou mensagem da
maioria dos provérbios é fácil de entender, pois as analogias falam por si. O
mesmo não acontece com muitas palavras. Elas entram sorrateiramente na
linguagem quotidiana, e quando se vai procurar a origem, muito tempo depois, é
difícil ou impossível encontrá-la. Estou curioso em saber, por exemplo, que
coisa, lugar, cidade deu origem à palavra usada em“foi pro beleléu”. Talvez
alguma vaca ou burro tenha errado o caminho do brejo e desaparecido nesse
beleléu. Cada animal tem suas preferências…
Título, Imagem e Texto: Jacinto Flecha, 22-02-2014
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