domingo, 22 de março de 2015

A comunidade versus Dolce & Gabbana

Se repararmos bem, há uns tempos para cá não conseguimos discutir nada sem tropeçar na palavra comunidade. Qual comunidade? Não interessa. O que interessa é que uma qualquer comunidade se diz ofendida

Helena Matos 
“Caros Dolce e Gabbana. Saudações desde os Estados Unidos. Os seis signatários desta carta foram criados por pais gays ou mães lésbicas. Cinco de nós são mulheres e um é um homem bissexual que criou os seus filhos com uma companheira do sexo oposto. Queremos agradecer-vos terem dado voz àquilo que aprendemos com a nossa experiência: todo o ser humano tem um pai e uma mãe, e eliminar um dos dois na vida de uma criança significa privá-la de dignidade e igualdade. Sabemos que serão submetidos a uma enorme pressão, especialmente agora que em Itália e nos Estados Unidos se pressiona para que o direito a ter uma mãe e um pai sejam censurados, a fim de satisfazer o poderoso lobby gay. “

Esta carta é mais uma peça a juntar à polémica que nas últimas semanas foi criada pelas declarações de Domenico Dolce e Stefano Gabbana à revista “Panorama” e em que o casal homossexual mais conhecido de Itália se manifestou contra as adopções por casais homossexuais e também contra o recurso à inseminação artificial, frequente entre as lésbicas que querem ser mães e também entre as mulheres que desempenham o papel de barriga de aluguer para homossexuais e heterossexuais. A carta termina com um apelo aos dois homens para que não se deixem abater pela contestação que as suas palavras geraram.

É cedo para dizer qual a ressonância que esta carta vai ter, mas não me enganarei muito se adiantar que será bem menor que aquela que teve a reacção indignada de Elton John, pai de dois filhos nascidos de uma barriga de aluguer, às palavras dos dois criadores italianos. O que penso nesta matéria não se afasta muito daquilo que declararam Domenico Dolce e Stefano Gabbana à “Panorama”: não questionando eu a capacidade de dois homens ou de duas mulheres para assumirem as responsabilidades de uma criança, isso não pode de modo algum diminuir o direito à identidade dessa criança, falando-se em dois pais ou duas mães. Ou mais grave ainda, anulando-se a figura das mulheres a quem se encomendou a gravidez daquela criança, como sucede quando se recorre às barrigas de aluguer, uma prática que também diz respeito aos casais heterossexuais.

Mas aquilo que me fez escrever este texto não foi a questão dos filhos dos casais homossexuais, as barrigas de aluguer ou o habitual enviesamento nas notícias sobre estas matérias. Foi sim uma frase que consta da carta enviada a Domenico Dolce e Stefano Gabbana por aqueles seis cidadãos norte-americanos. Uma frase em que se lê: “Ninguém recebe ataques tão violentos do lobby gay como aqueles que pertencendo à comunidade homossexual põem em causa as suas políticas.”

Se repararmos bem de há uns tempos a esta parte não conseguimos discutir nada sem tropeçar nessa palavra, comunidade. Qual móvel esquecido no meio da sala, lá está ela à espera do momento em que, distraídos, esbarramos com uma das suas esquinas e prontamente somos acusados estar contra a comunidade. Qual comunidade? Não interessa. O que interessa é que uma qualquer comunidade se diz ofendida.

Não sei quando as comunidades chegaram às notícias mas constato que elas não param de se reproduzir. Cada vez há mais comunidades. Temos a comunidade africana. A comunidade chinesa. A comunidade cigana… A estas comunidades de base étnica juntam-se comunidades religiosas, como a comunidade islâmica e a hindu ou comunidades definidas a partir do sexo como é o caso da comunidade homossexual. Cada uma destas comunidades subdivide-se em outras comunidades e assim sucessiva e antagonicamente pois uma das características do mundo comunitário é que pode assumir como traço identitário aquilo que aos extra-comunitários é vedado. Por exemplo, em Portugal a comunidade cabo-verdiana e a comunidade cigana assumem sem qualquer censura social uma hostilidade mútua, como se tal despropósito lhes estivesse inscrito nos genes. E se algum hindu ou muçulmano reage mal ao casamento dos seus filhos com pessoas doutras religiões, logo alguém mais informado lhes justifica o notório racismo com a pertença à respectiva comunidade.

Em boa verdade, à excepção dos brancos heterossexuais não islâmicos, todos os restantes estão mais ou menos arrumados em comunidades. Os brancos heterossexuais não islâmicos são frequentemente racistas e intolerantes. Os que não cabem nessa categoria e consequentemente se arrumam numa das várias comunidades também. Mas enquanto que para os primeiros, os brancos heterossexuais não islâmicos, isso é um crime, nos segundos não passa de um traço cultural.

Não é preciso ser um analista particularmente dotado para constatar que os velhos tópicos e propósitos da luta de classes deram lugar ao discurso do multiculturalismo. A comunidade funciona como uma estufa onde prolifera o discurso do ressentimento e o eu se vê como vítima versus o outro invariavelmente desenhado como opressor. Mas não só, como se assinala na carta dirigida a Domenico Dolce e Stefano Gabbana por aqueles seis cidadãos norte-americanos e que volto a citar: “Ninguém recebe ataques tão violentos do lobby gay como aqueles que pertencendo à comunidade homossexual põem em causa as suas políticas.” Tiremos gay/homossexual e substituindo-os pelos termos equivalente das outras comunidades e constaremos que a frase se mantém sempre válida.

A comunidade tornou-se também num espaço de severo controlo para aqueles que a integram. Ser visto como membro de uma comunidade dá aos seus membros uma espécie de estatuto de excepção mediática e politicamente consagrada. Mas se alguém que faz parte de uma determinada comunidade diz algo que não se enquadra no discurso que está previsto para essa comunidade, arrisca-se a ter de pagar um preço por isso. Por isso, e apesar do sucesso do seu último desfile, Domenico Dolce e Stefano Gabbana podem ver diminuir substancialmente as suas vendas depois destas declarações. Afinal, quando se vendem camisas de ramagens a 400 euros, vestidinhos a 2000 e alpercatas com sola de corda a 275 (mais ou menos iguais àquelas que se compram por cinco a dez euros nas alcofas do costume), depende-se e muito dos humores e das graças do mundo mediático.

Mas as consequências desta comunitarização da sociedade, em certo sentido quase uma tribalização, podem ser bem mais perversas que a diminuição de vendas que a marca Dolce & Gabanna arrisca neste momento. Quando sabemos que nos museus e galerias da Europa se deixam de exibir quadros, tapeçarias e azulejos com séculos e séculos que representam Maomé alegando-se que a comunidade muçulmana se pode ofender, o que estamos a fazer senão a obrigar os muçulmanos a seguir os ditames dos seus radicais? Mais, estamos a fazer dos radicais os porta-vozes da dita comunidade muçulmana. Em alguns casos a situação é ainda mais insólita pois acaba-se a tratar cidadãos nacionais como estrangeiros ou emigrantes. O caso dos ciganos para quem agora se inventou a figura do mediador municipal, é exemplar deste paradoxo. Portugueses há séculos e séculos, precisam agora os ciganos de alguém que lhes explique as usanças do reino? Não duvido das boas intenções do propósito, mas duvido muitíssimo da necessidade e sobretudo do resultado. Seja no caso concreto dos ciganos, seja de qualquer outra comunidade.

Trevor Phillips, um jornalista que durante o governo de Blair dirigiu a Comissão para a Igualdade Racial, vem agora num documentário intitulado “Things We Won’t Say About Race That Are True” chamar a atenção para algo que já se tornara evidente em França aquando dos tumultos de 2005: não só o multiculturalismo falhou como se transformou num eixo de financiamento e de poder para os líderes das minorias. Estes, longe de promoverem a integração, têm contribuído para o crescimento do gueto e da exclusão porque é aí e daí que lhes advém a influência.

Não sei se a ruptura daqueles que paternalmente arrumámos nas comunidades com essas mesmas comunidades vai ou não acontecer. Mas tenho a certeza de que aqueles que ousarem essa ruptura vão pagar um preço por isso.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 22-3-2015

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