O livro de Lobão "Manifesto do NADA na Terra do NUNCA"tem 143 páginas assim
distribuidas:
Folha de Rosto
Créditos
Agradecimento
Prólogo: Aquarela do Brasil
2.0
1. A Terra do Nunca
2. Um pequeno mergulho no mundo sertanejo universitário
(acidentalmente gonzo)
3. Vamos assassinar a presidenta da República?
4. Por que o rock continua errando?
5. O reacionário
6. Viagem ao coração do Brasil
7. Confesso a vocês: sou uma besta quadrada
8. A utopia antropofágica revisitada — Carta aberta de Lobão a
Oswald de Andrade
Glossário
Bibliografia
Créditos
Eis um excerto do último
capítulo, o oitavo, “Carta aberta de Lobão a Oswald de Andrade":
[…]
Ao colocar o insight “Só não
há determinismo onde há o mistério. Mas que temos nós com isso?”, seremos
forçados a concluir que...
Nós nunca temos nada a ver com
nada, inclusive com o significado das coisas, querido amigo. Com essa
mentalidade, você só vai incrementar um obscurantismo cheio de retórica
excludente e nebulosa para confeccionar uma cenografia de um mistério piegas,
cínico, pouco corajoso e sinistramente determinista: seremos pseudossilvícolas,
culpados por sermos o que não conseguimos admitir ser, preguiçosos soberbos e
incompetentes para sempre.
Na obsessão em se apartar da
história da civilização ocidental manifestada em mais um “Contra as histórias
do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem
Napoleão. Sem César”, eu perguntaria:
Por que não incluir tudo o que
possa ser conhecimento, tudo que valha a pena, sem essas muletas lambuzadas de
bílis?
Alinhavando “A fixação do
progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão.
Só a maquinaria. E os
transfusores de sangue”, eu diria que:
Progresso não se fixa, Oswald,
se conquista, e não deve ser temido, muito menos desprezado.
E por que “Contra as
sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas”?
Vou tentar passar essa sua
frase para algo mais proativo: a favor das sublimações das compatibilidades
entre todos nós, seres de boa vontade, compatibilidades que levaremos, livres
de todo o ódio, em nossas naves espaciais.
Nós também fomos trazidos
pelas caravelas. Estamos todos juntos e misturados nas galés, nas senzalas e
nas matas. Não existe um só brasileiro vivo, incluso em nossa sociedade, que
possa afirmar alguma pureza étnica, Oswald. Ainda bem. Não podemos exorcizar os
crimes de gerações que nos precederam através de um simplório e inócuo automartírio.
Temos, sim, que resolver
nossos problemas, retardamentos, desastres e paralisias de maneira incisiva,
através do conhecimento, da vontade e do esclarecimento, e, se possível, o
quanto antes. Não temos mais tempo para ações inconsequentes, folclóricas e rancorosas.
Sendo assim, e por isso mesmo,
não podemos esquecer que somos indivíduos e respondemos pelos nossos atos,
nunca pelos atos de quem quer que seja. Não adianta sair por aí de tanga para
nos eximir de uma culpa que não é nossa. Vamos incluir, Oswald, e VAMOS PARA O
ESPAÇO!
E, quando você desfere uma
pérola tonitruante como essa, mais uma vez a insistir...
“Contra a verdade dos povos
missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o visconde de Cairu:
— É mentira muitas vezes repetida”?
A pergunta que não que calar
é: E por acaso, antropófago lá tem alguma condição de ser sagaz? O antropófago
por hobby, por crença, por adesão, por metáfora, por patologia ou por recalque
é a mais miserável condição de qualquer ser, querido Oswald. Se fosse sagaz,
não optaria por ser antropófago. É inadmissível a prática da antropofagia por opção
ou por ser fashion. Só em último caso de sobrevivência ou, na melhor das hipóteses,
como simbologia litúrgica, o que, ao que tudo indica, não é o seu caso.
A “mentira muitas vezes
repetida”... deglutindo Goebbels até sua antropofagia virar verdade?
Se você soubesse quantos
cretinos fundamentais regurgitarão (uma metáfora digestiva em sua homenagem)
por aí, convictos e contritos, essas atrocidades como verdades sagradas para,
convenientemente, mascarar a própria imbecilidade...
Não seria uma espécie de fuga
de responsabilidade e culpa de burguês acomunistado afirmar que “não foram
cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo,
porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”?
Fugitivos de uma civilização
que estamos comendo é ótimo! Cruzado ou fugitivo, nesse caso não faz a menor
diferença. Eles, querendo ou não, somos nós. Isso é autofagia! E, ao contrário
do que você pensa, estamos longe de ser algo próximo de fortes, Oswald.
Amarelamos com assustadora
constância. Aí a vingança se transforma em rancor.
Você não vai chegar a lugar
algum querendo infantilmente fugir dos fantasmas desses fugitivos se
emperiquitando de plumas e cocares de araque, como uma peruca na cabeça de um
careca (o único a não se tocar da própria peruquice) e, ainda por cima, ao importar
o rancor do pobre Jabuti, correr o risco de acabar por adotar sua estonteante velocidade
como legado existencial que se transformará em norma de conduta e dinâmica dos
seus crédulos e fiéis seguidores.
Ou seja, um Brasil
pindoramizado, devagar, quase parando...
E almejar um purismo autóctone
é pouco inteligente, um tanto esquizofrênico e bastante nazistoide. Não é a sua
cara, Oswald.
Ao condicionar “Se Deus é a
consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe
dos vegetais”, eu te digo uma coisa, Oswald: nacionalizar divindade a essa
altura do campeonato é de última, irmão. E lá vamos nós enfrentar aquela
ladainha demagógica de deusas matriarcas... e índias. Não faltarão histéricos a
bradar essas babaquices por aí, numa epidemia de fervor fundamentalista tupi e canalhice
oportunista por todo o território nacional.
E envaidecer-se por acreditar
que “Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política, que
é a ciência da distribuição. E um sistema socialplanetário”, fornecerá um
profundo lastro para o ideário rastaquero/comunistoide...
Hoje em dia, somos pura
especulação, Oswald. Sistema social planetário? Hegemonia de sua lei única do
mundo? Mau negócio. Adivinhação? Você quer dizer orelhada?
Ciência da distribuição?
Distribuição de quê? De favores? De pastas ministeriais?
Assistencialismo?
Além do mais, esses argumentos
alucinados, na primeira pessoa do plural, incitarão uma plêiade de asnos
vindouros, entusiastas maníacos, bem-intencionados, no entanto impotentes em
sua mornice comportamental, passadistas (pois é, quem diria?), todos à procura
da adivinhação fácil, de um sistema social planetário comunistoide, de uma pureza
de raiz piegas. Transformando a sua visão vanguardista em retardamento social, mental
e acadêmico.
O mesmo metabolismo de sempre
(outra metáfora digestiva, em sua homenagem).
Todos à procura do canto do
sabiá-preguiça, da magia, da orelhada, do joão-sembracismo, à procura idiota e
falsa de uma linha evolutiva da música, das artes plásticas, da literatura:
“Meu pai era paulista, o meu avô pernambucano...” Idealizando o brasileiro castiço,
puro, não contaminado (como se isso fosse possível), entoando odes a uma desencavada
metarraça superior, suas características exclusivas dos eleitos por um destino
mágico e outros tantos milhares de atrocidadezinhas mais, Oswald.
“De William James e Voronoff.
A transfiguração do Tabu em totem.” Seria uma construção de um álibi para sua
poética perversão obsessivo/antropofágica?
E eu emendaria concluindo: o
totem em dogma. Querendo se livrar de um academicismo, sem perceber (e, quero
acreditar, sem querer), criaste um outro bem mais tenaz, tacanho e duradouro.
Uma boa parte de intelectuais e artistas brasileiros peca por pusilanimidade,
por falta de ousadia, e sempre está à cata de um corrimão conceitual pelo qual
se guiar. Não largam dele nem que a vaca tussa. Se cagam de medo de errar
ou de perder suas miseráveis
posições no métier ou nos subsídios pouco decorosos da lei de incentivo à
cultura. Estamos nessa besteirada há noventa anos. Sem nenhuma relevante
contestação de algum grupo significativo. Quem se levantou sozinho foi devidamente
evaporado.
Oswald, você não imagina que
esse temerário espírito libertário de desconstrução moral embutida em “O pater
familias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + falta de
imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa” poderá acarretar!
Essa moral está bem
estragadinha, viu? A cegonha, hoje em dia, não está muito em voga. Creio que
quase mais ninguém sabe que se usava a historinha da cegonha que trazia os
bebês para a mamãe quando engravidava... Atualmente, o barato é transformar as
menininhas em miniputas no vestir, no maquiar e no dançar, acelerando, inclusive,
o processo de menstruação das pobres, Oswald. Uma loucura!
Fecho com você em relação à
ignorância real das coisas. Hoje em dia, você sabia que a média anual de
leitura do brasileiro universitário é de menos de um livro por ano? E que 90%
desse ínfimo número são livros de autoajuda ou doutrinas fajutas da esquerda? E
nós, em estado de graça, a sambar na maior felicidade, num rebolado febril, improvável,
inexplicável, indesculpável, nas praças, nas avenidas, nos botequins.
Quando você diz que... “É preciso
partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas o Caraíba não
precisava. Porque tinha Guaraci”, estaria tropicalizando o ateísmo ou não?
Parabéns para o Caraíba. Nem
eu, nem você, nem o resto da população, na real mesmo, conseguiríamos, com toda
a honestidade, a alteridade necessária para penetrar numa realidade caraíbica.
Agora, sejamos mais humildes e deixemos afirmações delirantes de lado.
Crente por crente, o ateu é um
crente do Nada, e o Nada é Deus de ninguém, portanto não permitirá quem quer
que seja a ter alguma vaga ideia de Deus e, com todo o respeito, fodam-se o
Caraíba e a pobre Guaraci, Oswald. Não dá para viver nem pensar de marcha a ré.
Se a vida tem algum sentido,
este é para cima e para a frente.
E ao ouvir uma frase como “O
objetivo criado reage como os Anjos da Queda.
Depois Moisés divaga. Que
temos nós com isso?”, te peço perdão pelo pito, mas...
Oswald, chega de ser palerma!
Alguém de razoável
inteligência não ficaria constrangido em perceber que um cara esperto e vivaz
como você foi capaz de proferir semelhante estultice: “Antes de os portugueses
descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”?
E você, eu e a esmagadora
maioria dos brasileiros que aqui habitam simplesmente não existiriam. O Brasil
sem os portugueses teria descoberto a felicidade, o coelhinho da Páscoa, o
saci-pererê, o Bozo e o Papai Noel, Oswald.
E lá vamos nós, mais uma vez
encarar o bloco do contra! “Contra o índio de tocheiro.
O índio filho de Maria,
afilhado de Catarina de Médicis e genro de d. Antônio de Mariz.”
Ressentimento não é exatamente
vingança. Ou pior, uma vingança impotente, atolada na impotência da impotência.
Querendo ser contra o índio de tocheiro, você está tentando, de novo, exaltar a
pureza do indígena intacto.
Indígena, hoje em dia, usa
calção Adidas, camisa de futebol e relógio de pulso, além do cocar, e deveria
ser um cidadão comum, sair daquelas reservas miseráveis que antropólogos em
toda a sua estupidez ideológica teimaram por transformar em museu com gente
viva dentro.
O índio, na verdade, está
louco para poder estudar, estudar em faculdade, gerar riquezas e poder ser
preso se ferir o código penal. Ser um subcidadão protegido pelo Estado é um
tipo de piedade inadmissível.
A Catarina de Médicis, por
pior que tenha sido, que ironia!, pelo menos inventou os talheres.
Querido Oswald, mais uma vez
eu insisto: com essa mania, você vai propiciar que grandes nomes da nossa terra
divaguem por essas obscuras plagas conceituais do rancor messiânico, e haverá
criaturas das mais variadas origens proferindo absurdos do tipo:
“Seremos uma Roma lavada em
sangue negro e índio!” Anti-imperialistas, nas suas reluzentes caras de pau,
almejando ser um grande império, pacifistas e progressistas, em um despudorado
delírio cívico, ansiando por vingança e separação.
A falta de rigor em nossa
autopercepção, na percepção do mundo, do universo, resulta numa visão de
parâmetros completamente arbitrários, passionais, delirantes e parciais.
Não poderíamos nos dar ao luxo
de semelhante indulgência. A História nos cobrará um ônus monumentalmente
trágico.
Querido Oswald,com essa
célebre frase, esse verdadeiro mantra: “A alegria é a prova dos nove”, você não
sente lá no fundo que acabará dando munição para uma plêiade de boçais
jactarem-se das mais cínicas e procrastinantes reivindicações?
Contudo, haveremos de
constatar que alegria sem motivo é um triste resultado dessa prova dos nove.
Nós deveríamos nos ater ao simples fato de haver ou não motivo para estarmos
alegres. Agora, alegria, alegria, não, né? Alegria comendo cocô é triste!
Senão, noves fora, um bobo alegre.
Ansiar por um matriarcado de
Pindorama não seria um singelo equívoco, Oswald?
O matriarcado, como dizia
Chesterton, é uma espécie de anarquia moral em que a mãe permanece fixa,
sozinha, porque os pais são fujões e irresponsáveis. É muito mais uma
precariedade de hábitos, uma fraqueza de caráter, do que propriamente uma
opção, Oswald.
Reagir, reagir, reagir?...
“Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.”
E viva o quê? A Amnésia? O
Esquecimento? A experiência pessoal pode se renovar sem precisar aniquilar a
experiência precedente. Muito pelo contrário: uma mente de razoável
inteligência só tende a se fortalecer ao ter uma experiência pessoal renovada…
[…]
Texto: Lobão, in “Manifesto do
NADA na Terra do NUNCA”
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É comico ver o Lobao tentando desancar o Oswald!!!
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