Se repararmos bem, há uns
tempos para cá não conseguimos discutir nada sem tropeçar na palavra
comunidade. Qual comunidade? Não interessa. O que interessa é que uma qualquer
comunidade se diz ofendida
“Caros Dolce e Gabbana.
Saudações desde os Estados Unidos. Os seis signatários desta carta foram
criados por pais gays ou mães lésbicas. Cinco de nós são mulheres e um é um homem
bissexual que criou os seus filhos com uma companheira do sexo oposto. Queremos
agradecer-vos terem dado voz àquilo que aprendemos com a nossa experiência:
todo o ser humano tem um pai e uma mãe, e eliminar um dos dois na vida de uma
criança significa privá-la de dignidade e igualdade. Sabemos que serão
submetidos a uma enorme pressão, especialmente agora que em Itália e nos
Estados Unidos se pressiona para que o direito a ter uma mãe e um pai sejam
censurados, a fim de satisfazer o poderoso lobby gay. “
Esta carta é mais uma peça a juntar à polémica que nas últimas semanas foi criada pelas declarações de Domenico Dolce e Stefano Gabbana à revista “Panorama” e em que o casal homossexual mais conhecido de Itália se manifestou contra as adopções por casais homossexuais e também contra o recurso à inseminação artificial, frequente entre as lésbicas que querem ser mães e também entre as mulheres que desempenham o papel de barriga de aluguer para homossexuais e heterossexuais. A carta termina com um apelo aos dois homens para que não se deixem abater pela contestação que as suas palavras geraram.
É cedo para dizer qual a
ressonância que esta carta vai ter, mas não me enganarei muito se adiantar que
será bem menor que aquela que teve a reacção indignada de Elton John, pai de
dois filhos nascidos de uma barriga de aluguer, às palavras dos dois criadores
italianos. O que penso nesta matéria não se afasta muito daquilo que declararam
Domenico Dolce e Stefano Gabbana à “Panorama”: não questionando eu a capacidade
de dois homens ou de duas mulheres para assumirem as responsabilidades de uma
criança, isso não pode de modo algum diminuir o direito à identidade dessa
criança, falando-se em dois pais ou duas mães. Ou mais grave ainda, anulando-se
a figura das mulheres a quem se encomendou a gravidez daquela criança, como
sucede quando se recorre às barrigas de aluguer, uma prática que também diz
respeito aos casais heterossexuais.
Mas aquilo que me fez escrever
este texto não foi a questão dos filhos dos casais homossexuais, as barrigas de
aluguer ou o habitual enviesamento nas notícias sobre estas matérias. Foi sim
uma frase que consta da carta enviada a Domenico Dolce e Stefano Gabbana por
aqueles seis cidadãos norte-americanos. Uma frase em que se lê: “Ninguém recebe
ataques tão violentos do lobby gay como aqueles que pertencendo à comunidade
homossexual põem em causa as suas políticas.”
Se repararmos bem de há uns tempos a esta parte não conseguimos discutir nada sem tropeçar nessa palavra, comunidade. Qual móvel esquecido no meio da sala, lá está ela à espera do momento em que, distraídos, esbarramos com uma das suas esquinas e prontamente somos acusados estar contra a comunidade. Qual comunidade? Não interessa. O que interessa é que uma qualquer comunidade se diz ofendida.
Não sei quando as comunidades
chegaram às notícias mas constato que elas não param de se reproduzir. Cada vez
há mais comunidades. Temos a comunidade africana. A comunidade chinesa. A
comunidade cigana… A estas comunidades de base étnica juntam-se comunidades
religiosas, como a comunidade islâmica e a hindu ou comunidades definidas a
partir do sexo como é o caso da comunidade homossexual. Cada uma destas
comunidades subdivide-se em outras comunidades e assim sucessiva e
antagonicamente pois uma das características do mundo comunitário é que pode
assumir como traço identitário aquilo que aos extra-comunitários é vedado. Por
exemplo, em Portugal a comunidade cabo-verdiana e a comunidade cigana assumem
sem qualquer censura social uma hostilidade mútua, como se tal despropósito
lhes estivesse inscrito nos genes. E se algum hindu ou muçulmano reage mal ao
casamento dos seus filhos com pessoas doutras religiões, logo alguém mais
informado lhes justifica o notório racismo com a pertença à respectiva comunidade.
Em boa verdade, à excepção dos
brancos heterossexuais não islâmicos, todos os restantes estão mais ou menos
arrumados em comunidades. Os brancos heterossexuais não islâmicos são
frequentemente racistas e intolerantes. Os que não cabem nessa categoria e
consequentemente se arrumam numa das várias comunidades também. Mas enquanto
que para os primeiros, os brancos heterossexuais não islâmicos, isso é um
crime, nos segundos não passa de um traço cultural.
Não é preciso ser um analista
particularmente dotado para constatar que os velhos tópicos e propósitos da
luta de classes deram lugar ao discurso do multiculturalismo. A comunidade
funciona como uma estufa onde prolifera o discurso do ressentimento e o eu se
vê como vítima versus o outro invariavelmente desenhado como opressor. Mas não
só, como se assinala na carta dirigida a Domenico Dolce e Stefano Gabbana por
aqueles seis cidadãos norte-americanos e que volto a citar: “Ninguém recebe
ataques tão violentos do lobby gay como aqueles que pertencendo à comunidade
homossexual põem em causa as suas políticas.” Tiremos gay/homossexual e
substituindo-os pelos termos equivalente das outras comunidades e constaremos
que a frase se mantém sempre válida.
A comunidade tornou-se também
num espaço de severo controlo para aqueles que a integram. Ser visto como
membro de uma comunidade dá aos seus membros uma espécie de estatuto de
excepção mediática e politicamente consagrada. Mas se alguém que faz parte de uma
determinada comunidade diz algo que não se enquadra no discurso que está
previsto para essa comunidade, arrisca-se a ter de pagar um preço por isso. Por
isso, e apesar do sucesso do seu último desfile, Domenico Dolce e Stefano
Gabbana podem ver diminuir substancialmente as suas vendas depois destas
declarações. Afinal, quando se vendem camisas de ramagens a 400 euros,
vestidinhos a 2000 e alpercatas com sola de corda a 275 (mais ou menos iguais
àquelas que se compram por cinco a dez euros nas alcofas do costume),
depende-se e muito dos humores e das graças do mundo mediático.
Mas as consequências desta
comunitarização da sociedade, em certo sentido quase uma tribalização, podem
ser bem mais perversas que a diminuição de vendas que a marca Dolce &
Gabanna arrisca neste momento. Quando sabemos que nos museus e galerias da
Europa se deixam de exibir quadros, tapeçarias e azulejos com séculos e séculos
que representam Maomé alegando-se que a comunidade muçulmana se pode ofender, o
que estamos a fazer senão a obrigar os muçulmanos a seguir os ditames dos seus
radicais? Mais, estamos a fazer dos radicais os porta-vozes da dita comunidade
muçulmana. Em alguns casos a situação é ainda mais insólita pois acaba-se a
tratar cidadãos nacionais como estrangeiros ou emigrantes. O caso dos ciganos
para quem agora se inventou a figura do mediador municipal, é exemplar deste
paradoxo. Portugueses há séculos e séculos, precisam agora os ciganos de alguém
que lhes explique as usanças do reino? Não duvido das boas intenções do propósito,
mas duvido muitíssimo da necessidade e sobretudo do resultado. Seja no caso
concreto dos ciganos, seja de qualquer outra comunidade.
Trevor Phillips, um jornalista
que durante o governo de Blair dirigiu a Comissão para a Igualdade Racial, vem
agora num documentário intitulado “Things We Won’t Say About Race That Are
True” chamar a atenção para algo que já se tornara evidente em França aquando
dos tumultos de 2005: não só o multiculturalismo falhou como se transformou num
eixo de financiamento e de poder para os líderes das minorias. Estes, longe de
promoverem a integração, têm contribuído para o crescimento do gueto e da
exclusão porque é aí e daí que lhes advém a influência.
Não sei se a ruptura daqueles
que paternalmente arrumámos nas comunidades com essas mesmas comunidades vai ou
não acontecer. Mas tenho a certeza de que aqueles que ousarem essa ruptura vão
pagar um preço por isso.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
22-3-2015
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