José Manuel Fernandes
O país já não se divide entre
o Mediterrâneo e o Atlântico, como o viu Orlando Ribeiro, mas entre o dos
telejornais, onde protesta e pede mais Estado, e o que tem mudado Portugal sem
darmos por isso.
Sábado de manhã. Sigo de
automóvel para uma conferência em que vou participar e ouço, quase distraído,
um daqueles programas de rádio onde dois animadores conversam e passam música.
De repente espanto-me. Um deles começa a contar como, recentemente, alguém
entrara nos seus registos fiscais, ficara a par dos seus rendimentos mensais e,
porventura por não gostar das suas opiniões, não achara melhor forma de agir do
que ir para a sua página do Facebook comentar as flutuações no seu rendimento.
Fazendo-o com o detalhe de distinguir alterações que ocorriam mês a mês.
O meu espanto vinha da
sinceridade: alguém que, de viva voz, contava como a “curiosidade” de um
qualquer funcionário da administração fiscal permitira uma intrusão que, depois,
se transformava numa quase ameaça escarrapachada numa página do Facebook.
Mas o meu espanto não se ficou
por aqui. O seu companheiro de programa, em vez de se assustar com esta espécie
de Estado “big brother” onde qualquer um de nós pode ser vítima da falta de
escrúpulos de um servidor público, tratou logo de levar a coisa para a política
e para os “quatro da lista VIP”, uma enumeração cuja única fonte é, até ao
momento, o dirigente sindical da classe de funcionários onde estas intrusões
parecem ocorrer com assustadora frequência.
Cheguei entretanto à
conferência para onde ia, uma organização de jovens católicos, e o moderador do
meu painel, que reunia pessoas ligadas a empresas criadas recentemente,
surpreendeu-me com a primeira pergunta. Ele queria saber se eu, jornalista,
sabia explicar o contraste entre o país que ele conhecia, onde muita gente
andava a tentar dar a volta à vida e muitas empresas estavam e reinventar-se
para voltarem a crescer, e o país que ele via todos os dias retratado na generalidade
da comunicação social, um país sempre a anunciar a catástrofe iminente ou a
lamentar mais uma desgraça.
Respondi-lhe como pude, até
porque ele também queria saber por que razão, estando eu há tantos anos numa
empresa como o Público, resolvera ajudar a criar uma nova, o Observador, com
todos os riscos associados. A resposta que lhe dei importa aqui pouco – importa
o que fui ouvindo ao longo daquela manhã e as conversas que tive depois com
alguns dos que lá estavam. E importa porque, de alguma forma, esse debate
alterou o estado de espírito algo sombrio com que entrara naquela enorme tenda
junto do CCB onde decorria esse evento, o Meeting de Lisboa.
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Nos últimos dias dera alguma
atenção à morte de uma figura que há mais de 20 anos me chamara a atenção,
desde a primeira vez que viajara para a Ásia: Lee Kuan Yew, o pai fundador da
Singapura moderna. Quem segue a minha newsletter diária, o Macroscópio, sabe que já me referi
a ele várias vezes e estava com intenção de escrever uma crónica sobre as
razões para naquele país com metade da população de Portugal se ter produzido o
milagre económico que nós falhámos.
O meu ponto de partida era
simples: em 1960 o PIB per capita do paupérrimo Portugal de Salazar era quase
igual ao de Singapura, uma antiga colónia britânica que só alcançara a
independência um ano antes, em 1959. Em dólares da época, o nosso PIB per
capita estava nos 357 USD, o de Singapura nos 395 USD (dados do Banco Mundial).
Ou seja, uma diferença de pouco mais de 10%. Em 2013, a nossa riqueza a dividir
por cada habitante quedava-se nos 20.995 USD, a de Singapura saltara para o
topo da lista mundial, estando então em 55.182 USD (estimativas do FMI).
Interessava-me discutir o porquês desta tão grande e tão rápida divergência e
os meus argumentos andariam em torno de diferenças nas instituições e na
cultura que as suporta.
Deixo contudo essa reflexão
para mais tarde, pois foi a pensar na nossa muito peculiar maneira de sermos
portugueses – nos nossos hábitos e nos nossos valores dominantes enquanto
sociedade –, que saí a pensar daquele encontro. E é sobre isso mesmo que vos
deixarei agora uma ou duas reflexões.
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Um dos livros mais luminosos
do nosso século XX é a síntese do país que então éramos elaborada por Orlando
Ribeiro, um geógrafo, em “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”. Obra
publicada em 1945, teria enorme influência em muitos estudos posteriores, da
História à Arquitectura, passando pela Biologia ou pela Antropologia, mas foi
caindo no quase esquecimento conforme o país foi mudando e à dualidade
matricial descrita por Orlando Ribeiro se foram sobrepondo outras dualidades:
país rural e país urbano, país litoral e país interior, até país de esquerda e
país de direita.
É possível que uma das últimas
grandes manifestações dessa dualidade matricial tenha sido a que emergiu na
grande crise do PREC, com a divisão norte/sul a passar mais ou menos pelo
paralelo de Rio Maior, mas depois disso o país misturou-se muito, tornou-se
ainda mais urbano, as divisões políticas esbateram-se e começámos a vermo-nos
como uma realidade quase homogénea. Uma realidade que, do pequeno crime ao
recorrente escândalo, passava diariamente pelos nossos telejornais com a mesma
força de uniformização cultural de uma telenovela brasileira (primeiro) ou de
uns Morangos com Açúcar (depois).
Esta leitura simplista de que
tudo o que se passa, passa pelas televisões, e que nestas é devidamente
explicado pelos comentadores e pelos especialistas, conduziram-nos a algumas
das perplexidades desta crise. Porque é que a depressão foi maior do que se
imaginava, sobretudo em 2012, ultrapassando todas as expectativas? E porque é
que a recuperação, em especial a recuperação do emprego, está a ser mais rápida
do que previram mesmo os mais desvairados optimistas? Como explicar que tendo a
crise atingido as proporções que atingiu, não tivessem ocorrido as revoltas que
dezenas de comentadores disseram que explodiram com níveis muito menores de
sofrimento? E como é possível que, depois de tudo isto, os partidos no poder
não apareçam reduzidos a pó, pelo menos nas sondagens?
Há algumas explicações para
estas surpresas, e por certo que algumas delas andarão pela forma vergonhosa
como falharam boa parte das nossas elites, quer das que estavam (e ainda estão)
habituadas à protecção do Estado, quer das que têm mais acesso ao espaço
mediático. Mas o que se me tornou mais evidente no debate em que participei
sábado de manhã é que é necessário ir mais fundo, tentar perceber melhor as
opções que cada português foi tomando ao longo destes anos para compreendermos
melhor a resultante – até porque a economia, essa ciência que invadiu o nosso
dia-a-dia, não é mais do que uma tentativa de compreensão do agregado de
milhões de decisões individuais.
Aqui chego, ou regresso, à
ideia de sermos muitas vezes “dois países”, já não os que Orlando Ribeiro
descreveu, se bem que neles permaneçam alguns dos seus traços. Para ir directo
ao assunto de uma forma porventura brutal e simplista, tivemos nestes anos um
país que se queixou e foi muito vocal, e um país que tratou de fazer pela vida,
de “se virar” o melhor que podia, um país que percebeu muito depressa que tinha
de alterar os seus hábitos de consumo (e por isso a recessão foi maior do que
esperava) mas, ao mesmo tempo, um país que procurou desenrascar-se e
improvisar, que saiu do seu conforto e assumiu mais riscos (e por isso
assistimos a coisas tão surpreendentes como a radical transformação do centro
de cidades como Lisboa ou o Porto ou descobrimos uma insuspeita capacidade para
exportar e ir, de novo, à conquista do mundo).
Haverá – há de certeza – um
lado redutor neste retrato e nesta dicotomia, que vale sobretudo como uma
possível chave de leitura. Mas, ao mesmo tempo, há algo que não é de forma
alguma uma caricatura, e essa é “a realidade a que temos direito” – ou seja, o
país dos telejornais, das greves do Metro e do omnipresente Mário Nogueira, do
caos numa urgência transformado no caos de todo o Serviço Nacional de Saúde, o
país das comissões de utentes saídas nunca se sabe de onde e dos bastonários na
pele de “passionárias”, o país que fala da “lista VIP” mas não se incomoda com
o Estado intrusivo e os seus funcionários abusadores (mas sindicalizados), o
país dos talibãs das redes sociais e da guarda pretoriana do politicamente
correcto.
Quem atenta apenas neste país,
e só a este país quer agradar, perde duplamente. Perde, porque nunca entenderá
o porquê de a realidade ter contrariado quase todas as suas previsões. E perde
porque quem anda como uma catavento em busca de uma sempre evanescente
popularidade, acaba a andar de cabeça baixa, sempre com medo de desagradar às
multidões, para usar uma imagem feliz de Francisco Assis.
A multidão não tem sempre
razão. E houve, e há, um outro país onde, procurando vencer cada dia a seguir
ao dia que passou, acaba, acabará, por dar a volta por cima. Esse país só
espera que o Estado o atrapalhe menos e não o prejudique para proteger os que
estão, sejam eles os taxistas
de Lisboa ou certos banqueiros de Cascais.
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