Helena Matos
Qual assunto? Os refugiados.
Entendamo-nos: o número de pessoas que está a chegar à Europa é ínfimo. Há
quarenta anos, em Setembro de 1975, quatro mil portugueses provenientes de
Angola desembarcavam diariamente nos aeroportos da Portela e Pedras Rubras. Portugal,
um pequeno país viu chegar, entre 1974 e 1976, mais de meio milhão de pessoas
às quais nunca reconheceu o estatuto de refugiados. Chamou-lhes retornados.
À época não vimos fotografias
das crianças mortas, que as houve, nem das mulheres violadas, nem dos
condutores queimados vivos. Vimos alguns corpos, geralmente de negros,
amontoados nas ruas de uma Angola a sossobrar na guerra. E, claro, tivemos
depois as imagens de gente amontoada no aeroporto, dos bebés de biberon na boca
a entreter o sono e dos caixotes em frente ao Tejo.
A experiência portuguesa
ensina várias coisas. Escolhi três. A primeira delas é que o pior que pode
acontecer a um povo é que o seu país desista dele ou que ele desista do seu
país.
A segunda é que o sucesso da
integração é tanto maior quanto menos paternalista for o acolhimento.
O terceiro ensinamento
ganhei-o não a investigar o fenómeno dos retornados, mas sim a ver, ouvir e ler
noticiários: vivemos de arrebatamento em arrebatamento e cada arrebatamento tem
de ser mais arrebatado para compensar a anterior desilusão.
Iniciámos o ano com o Syriza e
a crise humanitária grega, depois veio o Varoufakis a dobrar a espinha à Merkel
e a Catarina Martins aos pulinhos em Atenas (que as sibilas nos perdoem!).
Abriam-se contas para financiar a Grécia (em troca podiam mandar-nos queijo e
azeitonas ou uma fotografia assinada pelo Tsipras). E até houve quem marcasse
férias na Grécia para ajudar a causa alternativa. Agora os gregos estão ainda
mais pobres, vai haver novamente eleições, ninguém quer saber da Grécia para
nada e a Catarina Martins já não pula, pelo menos em Atenas. Agora só se pensa,
fala e sente o drama dos refugiados.
Temo sinceramente que à
primeira desilusão com os ditos refugiados logo eles sejam esquecidos como
todos os outros objectos da nossa solidariedade nos últimos anos.
As causas estão para os
enfastiados europeus como os brinquedos para as crianças mimadas. Rapidamente
mandarão os refugiados sírios para o baú onde estão os palestinianos mais o
rais Arafat que vivia na mukata (oh que saudades da forma como na SIC se
pronunciavam estes termos!), as primaveras árabes, o leão Cecil, os habitantes
do Haiti, que continua devastado anos depois do terramoto, mas isso agora não
interessa a ninguém, e essas cleptocracias africanas que ainda há alguns anos
motivavam abaixo-assinados, cantos que se diziam livres, hinos e posters, tudo
sempre em nome da libertação. Dentro de pouco tempo os refugiados sírios serão
substituídos por outros protagonistas e depois bem podem permanecer acantonados
num qualquer canto da Hungria que ninguém se interessará pelo seu destino.
Claro que no terreno ficarão
as associações, os conselhos disto e daquilo, mais os mediadores que constituem
o mundo do chamado apoio. Confesso que ao ler a descrição de algumas das
iniciativas de recepção aos refugiados temo o pior. E aqui chegamos à minha
segunda conclusão: o sucesso da integração é tanto maior quanto menos
paternalista for o acolhimento. Veja-se o caso das aulas de Português separadas
por sexos – coisa que alguns nem sequer frequentaram na sua Síria natal – que
revela um estonteamento que só não é ridículo porque é perigoso. Tratar os
refugiados como pessoas especiais é apenas prolongar a sua dependência e o seu
ostracismo. Estratégia certamente interessante
para quem, como é o caso dos radicais da política, se alimenta da indústria do
ressentimento. Ou de quem vive de acusar os outros sem nunca responder pelo
sucesso das suas intervenções, como acontece com várias das pessoas que
trabalham na área do apoio social. Ao contrário do que se possa pensar, os mais
dependentes dos apoios muito frequentemente não são aqueles que os recebem mas
sim aqueles que os distribuem e que não podem deixar de os distribuir porque
isso seria o fim da sua razão de existir.
Passemos finalmente para a
conclusão que me falta: o pior que pode acontecer a um povo é que o seu país
desista dele ou que ele desista do seu país. Em 1975, boa parte do país tinha
de facto desistido dos portugueses de África – “Ó senhor tenente-coronel,
porque é que está tão preocupado com isso? Eles comeram a carne, agora que roam
os ossos.” – declarava Pinheiro de Azevedo a Gonçalves Ribeiro quando este
militar lhe tentava explicar a necessidade de organizar uma ponte aérea para
retirar os portugueses de África.
Hoje claramente os sírios não
contam com a protecção do seu país e os bons europeus há muito que esqueceram
que um país não é um catálogo de direitos. A presente crise dos refugiados para
lá de evidenciar a degradação da vida nos seus países de origem coloca-nos face
a um dos mitos do nosso tempo: a de que no Ocidente podíamos substituir as
intervenções militares por intervenções humanitárias. Não podemos. Entre outras
razões porque nos desumanizamos. Aliás não tardará que, se o fluxo de refugiados
se mantiver nos actuais níveis, passemos todos a imitar a Hungria.
A ilusão de que podíamos viver
rodeados de turbulentos vizinhos a quem nos momentos difíceis oferecemos
medicamentos e provisões é falsa e perigosa. Ou temos força suficiente para
participar no esforço de estabilização desses países – e isso não se faz com
drones mas sim com exércitos –, ou acabamos a pôr tropas a perseguir os
refugiados. É apenas uma questão de tempo.
Por fim e para o fim, uma
questão que se me coloca de cada vez que leio aqueles títulos sobre a vergonha
que estes refugiados representam para a Europa. Lamento ir contra a corrente
mas não vejo ali vergonha alguma para a
Europa. Estas pessoas fogem para Europa. Revelam aliás uma noção muito clara
dos sítios onde querem viver nessa Europa. Vergonha será sim para os dirigentes
dos seus países. E também para os países muçulmanos. Por exemplo, quantos
refugiados recebeu o riquíssimo Qatar? E o também fabulosamente rico Dubai? E a
piedosa, islamicamente falando, claro, Arábia Saudita? Note-se que nem me
interrogo se seria possível, equacionável ou sequer imaginável que esses países
nos acudissem a nós, europeus, se um qualquer desastre nos obrigasse a fugir
intempestivamente. Mas ao menos para estas pessoas que são muçulmanas, onde
está o apoio dos países islâmicos?
Os refugiados confrontam-se
com as falhas dos países para onde fogem. Mas em primeiro lugar, como bem
sabemos pela nossa própria experiência, o
falhanço foi o dos seus países e dos seus líderes. Querer subestimar essa
responsabilidade e transferi-la para outros é uma forma de desculpar o que não
tem desculpa.
Sobre o que o futuro reserva a
essas pessoas não sei. Mas sei que as próximas legislativas serão em Portugal
muito provavelmente vencidas ou por um retornado, Passos Coelho, ou por um
descendente de um goês, António Costa. E isso não me parece nada uma má notícia.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
6-9-2015
Grifos: JP
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