João César das Neves
Donald Trump tem utilizado um
método terrível de combate político. Ao denunciar a imprensa por produzir
notícias falsas (fake news), torna-se
imune a qualquer crítica. O que quer que se invoque contra ele é descartado
como manipulação de uma comunicação social hostil, ficando assim livre de
ataques.
O truque é perverso, anulando
o debate, mola vital da democracia. Mas o pior é a dose de verdade que
indiscutivelmente contém. Por muito mau que o presidente seja, não se podem
negar as justas razões de queixa da sua cobertura mediática. Com Trump,
televisões e jornais também não têm sido justos e democráticos. Assim, todos
perdem.
Esta realidade aponta para um
dos problemas mais profundos no futuro da liberdade, o poder desmesurado da
imprensa na era da informação, e a inevitável tentação de abusar dele, mesmo
com boas intenções. O caso português dos últimos meses é um bom exemplo.
Como na generalidade do mundo
desenvolvido, a comunicação social lusitana está bastante à esquerda do resto
do país. Perante o improvável governo de António Costa, a nossa imprensa vive
uma das horas mais deploráveis da sua história democrática. Flagrantemente
apaixonada pelo poder, chega a ser confrangedor constatar a cegueira
jornalística em face dos problemas e erros dos ministros, e a solicitude
bajuladora nos sucessos. Para quem lembre a terrível severidade nos casos
anteriores, a atual mansidão mediática só pode surpreender.
Mais significativo, a dureza
crítica mantém-se, mas agora reservada para os centros de poder independentes
do governo. Magistratura, Forças Armadas, Banco de Portugal, Conselho das
Finanças Públicas e outras instituições de controlo democrático têm andado
debaixo de uma terrível barragem de fogo, antes reservada aos ministros. Agora,
até a Igreja Católica sofre a indignação mediática. Outros, como o Presidente
da República, são tolerados condicionalmente, enquanto apoiarem a maioria. O
consenso faz lembrar regimes irrespiráveis.
Nessas campanhas, hoje como
sempre, os meios usados são infalíveis, assegurando sempre a condenação do
visado, qualquer que seja a situação. A comunicação social é sumamente eficaz a
passar mensagens, independentemente da sua fiabilidade. Aqui se situa o busílis
da questão. Nunca se viu um jornalista perder um debate, porque controla todo o
processo, do princípio ao fim. A imprensa é advogado, juiz, júri e carrasco num
só, e ai de quem se vir no caminho da sua raiva. Se Sócrates é culpado, a sua
punição virá muito mais dos jornais do que dos tribunais; se está inocente, já
ninguém o livra do castigo. Mesmo quando o jornalista ouve os dois lados, o que
nem sempre acontece, o réu não tem hipótese contra a voz off da reportagem, que
destrói sem apelo nem resposta a sua argumentação.
Aliás, não se pode esquecer
que a comunicação social nunca diz verdades, mas notícias. A diferença é que
estas constituem a parte interessante, interpelante e engraçada dos factos. O
resto não interessa e fica oculto. Basta notar que aquilo que os jornais trazem
é sempre simples, claro, divertido, provocador, desenhado a preto e branco, com
maus horríveis e bons vítimas inocentes. Ora nós, que andamos na realidade,
sabemos bem como o mundo é complexo, confuso, maçador, cinzento. Por isso as
questões têm de ser muito mais morosas, intrincadas e ambíguas do que dizem as
notícias.
Finalmente há o enviesamento.
O jornalista centra-se na mancha do quadro, por mínima que seja, ignorando o
resto, mesmo vasto e meritório. A floresta é esquecida não pela árvore, mas
pelo pinhão. Pior, assim que cheira a sangue, o instinto de matilha traz todos
os colegas a atropelar-se nesse ponto, num vórtice que só pode expulsar a
seriedade. No final, a vítima fica prostrada, com a reputação destruída,
enquanto o circo mediático segue em busca da próxima vítima. Quando se revelar
a arbitrariedade da difamação, já ninguém ouve.
A Cáritas, por exemplo, é
inegavelmente uma das instituições mais ativas e relevante na assistência aos
pobres e necessitados. É quase inacreditável que se tenha orquestrado uma
campanha contra ela, com factos pontuais, discutíveis e evidentemente
empolados, logo na semana em que decorria o seu peditório nacional. Um pequeno
detalhe serviu para sujar toda a complexa e multifacetada instituição, em
grande medida alheia à agressão. Tratou--se, sem dúvida, da maior operação de
sabotagem contra os pobres da nossa história recente. Mas os jornalistas
pareciam tão contentes consigo mesmos que, provavelmente, nem se deram conta do
horror que praticaram. Tudo foi tão gratuito, injusto e indefensável, que é
difícil não imaginar alguns mandantes ocultos aproveitando de manobras
interesseiras.
Suspeitas de conspiração são
veneno para o regime. A comunicação social é um dos pilares mais decisivos da
liberdade pessoal e social. Por isso quando se perverte, todo o edifício
democrático fica em risco. Mais até do que nas tropelias de Trump.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-