segunda-feira, 3 de abril de 2017

Notícias Falsas

João César das Neves

Donald Trump tem utilizado um método terrível de combate político. Ao denunciar a imprensa por produzir notícias falsas (fake news), torna-se imune a qualquer crítica. O que quer que se invoque contra ele é descartado como manipulação de uma comunicação social hostil, ficando assim livre de ataques.

O truque é perverso, anulando o debate, mola vital da democracia. Mas o pior é a dose de verdade que indiscutivelmente contém. Por muito mau que o presidente seja, não se podem negar as justas razões de queixa da sua cobertura mediática. Com Trump, televisões e jornais também não têm sido justos e democráticos. Assim, todos perdem.

Esta realidade aponta para um dos problemas mais profundos no futuro da liberdade, o poder desmesurado da imprensa na era da informação, e a inevitável tentação de abusar dele, mesmo com boas intenções. O caso português dos últimos meses é um bom exemplo.

Como na generalidade do mundo desenvolvido, a comunicação social lusitana está bastante à esquerda do resto do país. Perante o improvável governo de António Costa, a nossa imprensa vive uma das horas mais deploráveis da sua história democrática. Flagrantemente apaixonada pelo poder, chega a ser confrangedor constatar a cegueira jornalística em face dos problemas e erros dos ministros, e a solicitude bajuladora nos sucessos. Para quem lembre a terrível severidade nos casos anteriores, a atual mansidão mediática só pode surpreender.

Mais significativo, a dureza crítica mantém-se, mas agora reservada para os centros de poder independentes do governo. Magistratura, Forças Armadas, Banco de Portugal, Conselho das Finanças Públicas e outras instituições de controlo democrático têm andado debaixo de uma terrível barragem de fogo, antes reservada aos ministros. Agora, até a Igreja Católica sofre a indignação mediática. Outros, como o Presidente da República, são tolerados condicionalmente, enquanto apoiarem a maioria. O consenso faz lembrar regimes irrespiráveis.

Nessas campanhas, hoje como sempre, os meios usados são infalíveis, assegurando sempre a condenação do visado, qualquer que seja a situação. A comunicação social é sumamente eficaz a passar mensagens, independentemente da sua fiabilidade. Aqui se situa o busílis da questão. Nunca se viu um jornalista perder um debate, porque controla todo o processo, do princípio ao fim. A imprensa é advogado, juiz, júri e carrasco num só, e ai de quem se vir no caminho da sua raiva. Se Sócrates é culpado, a sua punição virá muito mais dos jornais do que dos tribunais; se está inocente, já ninguém o livra do castigo. Mesmo quando o jornalista ouve os dois lados, o que nem sempre acontece, o réu não tem hipótese contra a voz off da reportagem, que destrói sem apelo nem resposta a sua argumentação.

Aliás, não se pode esquecer que a comunicação social nunca diz verdades, mas notícias. A diferença é que estas constituem a parte interessante, interpelante e engraçada dos factos. O resto não interessa e fica oculto. Basta notar que aquilo que os jornais trazem é sempre simples, claro, divertido, provocador, desenhado a preto e branco, com maus horríveis e bons vítimas inocentes. Ora nós, que andamos na realidade, sabemos bem como o mundo é complexo, confuso, maçador, cinzento. Por isso as questões têm de ser muito mais morosas, intrincadas e ambíguas do que dizem as notícias.

Finalmente há o enviesamento. O jornalista centra-se na mancha do quadro, por mínima que seja, ignorando o resto, mesmo vasto e meritório. A floresta é esquecida não pela árvore, mas pelo pinhão. Pior, assim que cheira a sangue, o instinto de matilha traz todos os colegas a atropelar-se nesse ponto, num vórtice que só pode expulsar a seriedade. No final, a vítima fica prostrada, com a reputação destruída, enquanto o circo mediático segue em busca da próxima vítima. Quando se revelar a arbitrariedade da difamação, já ninguém ouve.

A Cáritas, por exemplo, é inegavelmente uma das instituições mais ativas e relevante na assistência aos pobres e necessitados. É quase inacreditável que se tenha orquestrado uma campanha contra ela, com factos pontuais, discutíveis e evidentemente empolados, logo na semana em que decorria o seu peditório nacional. Um pequeno detalhe serviu para sujar toda a complexa e multifacetada instituição, em grande medida alheia à agressão. Tratou--se, sem dúvida, da maior operação de sabotagem contra os pobres da nossa história recente. Mas os jornalistas pareciam tão contentes consigo mesmos que, provavelmente, nem se deram conta do horror que praticaram. Tudo foi tão gratuito, injusto e indefensável, que é difícil não imaginar alguns mandantes ocultos aproveitando de manobras interesseiras.

Suspeitas de conspiração são veneno para o regime. A comunicação social é um dos pilares mais decisivos da liberdade pessoal e social. Por isso quando se perverte, todo o edifício democrático fica em risco. Mais até do que nas tropelias de Trump. 

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