segunda-feira, 31 de julho de 2017

Mortos e vivos

João Pereira Coutinho

Qualquer tentativa de manipular os números, ou até de os “tratar” com critérios bizarros (mortes diretas, mortes indiretas) esbarra com coisas básicas, como indenizações devidas (e não recebidas)


NOS DIAS SEGUINTES à tragédia de Pedrógão Grande, um amigo jornalista, que andou pelo terreno, dizia-me que o número final e oficial de mortos – 64 – não correspondia à verdade. Pelos seus cálculos, o horror atingia outras proporções. “Três dígitos”, suspeitava ele.

Lembro-me de rir. E de pensar: em ditadura, é fácil controlar a realidade. Basta ter uma polícia política e uma máquina eficaz de censura para manter o rebanho na linha.

Em democracia, a dificuldade aumenta. As pessoas falam. E, ponto crucial, as famílias sabem quem perderam. Qualquer tentativa de manipular os números, ou até de os "tratar" com critérios bizarros (mortes diretas, mortes indiretas) esbarra com coisas básicas, como indemnizações devidas (e não recebidas). Para usar as palavras de Talleyrand, ocultar a verdade de uma tragédia como Pedrógão não é apenas um crime; é um erro. E uma confissão de estupidez que está para lá do meu entendimento.

Aliás, continua a estar. Mas as notícias dos últimos dias têm provocado tremores no meu optimismo antropológico. Tudo começou com a 65ª vítima: uma senhora que fugia do inferno e foi mortalmente atropelada. Não está na lista. Porquê? Segundo os "critérios", não morreu queimada nem asfixiada (palavra de honra). O meu coração parou: querem ver que eu sobrestimei a inteligência dos nossos governantes?

ESPERO QUE NÃO.
Mas, a título de hipótese, o que poderia levar um governo, qualquer governo, em qualquer parte do mundo civilizado, a cometer semelhante torpeza?

A falta de inteligência não explica tudo. O poder explica muito mais. Li há tempos, e escrevi algures, que estudos recentes nas áreas da Psicologia e das neurociências defendiam que o efeito do poder no cérebro humano era muito semelhante a certos tipos de lesão cerebral. Para Dacher Keltner (psicólogo) e Sukhvinder Obhi (neurocientista), o poder tende a inibir os circuitos empáticos. Moral da história?

Esta "doença", se merece o nome, alimenta no político, e sobretudo no líder, uma falsa confiança nas suas capacidades para entender e moldar o universo em volta. Com o poder, há uma parte da massa cinzenta que tende a diminuir. A única coisa que cresce é o sentimento de impunidade.

ESTE GOVERNO NÃO DESCONHECE ESSE SENTIMENTO. 
Leio na imprensa nativa que há um antes e um depois de Pedrógão Grande. Antes de Pedrógão, o Governo caminhava sobre as águas, iluminado pela inteligência de António Costa e os milagres da economia. Depois de Pedrógão, começou o naufrágio: Costa, afinal, não é o "gestor político" que se imagina e nem os sucessos econômicos escondem a falência do Estado.

Entendo que esta história faça as delícias de muitas crianças. Infelizmente, já não sou criança. O Governo que temos depois de Pedrógão é o mesmo que tivemos antes. Para ser exato, é o mesmo que nasceu no dia de uma derrota eleitoral. Para os sábios comentadeiros, perder as eleições e conseguir formar Governo era a prova definitiva de um António Costa tocado pelo gênio. 

Acontece que não era. O gesto podia ser constitucionalmente impoluto. Mas revelava um desprezo pela nossa tradição democrática - quem ganha, mesmo em minoria, tem oportunidade de governar - que não augurava nada de bom. Se juntarmos ao cenário certos traços de carácter - como, por exemplo, enviar mensagens a jornalistas com ameaças diretas - o retrato do cavalheiro não era propriamente inspirador. O País que ainda pensa, confrontado com tal novidade, perguntou: "Será que, a partir de agora, vale tudo?"

SIM, AS TRAGÉDIAS ACONTECEM. 
Nos dias seguintes, governos dignos desse nome começam a fazer perguntas simples. Como foi possível? O que falhou? E, já agora, quantas pessoas morreram - e quantas ficaram feridas? As respostas chegam para restabelecer o elo de confiança entre os cidadãos e o Estado.

No Portugal de 2017, temos esta originalidade: uma catástrofe sem precedentes - e ninguém sabe nada de nada. Não existe uma explicação. Um número fiável de mortos. Um número fiável de feridos. Aliás, sobre os feridos, ninguém sabe em que estado estão: se melhoraram, se pioraram, se morreram, entretanto. E o dinheiro das ajudas? Ainda não chegou. Porquê? Não sabemos. Quanto é ao certo? Também não.

No topo do bolo, existe agora a suspeita de encobrimento do número de vítimas e relatos dispersos de "pressões" e "ameaças" aos sobreviventes. Para não falarem demais.

O sr. Presidente da República que esteja descansado: é apenas o regular funcionamento das instituições no seu melhor. 
Título, Imagem e Texto: João Pereira Coutinho, SÁBADO, nº 691, de 27 de julho a 2 de agosto de 2017

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