Paulo Tunhas
É difícil, por estes dias, não pensar o
pior de António Costa. A razão do fenómeno está no próprio Costa, nos limites,
agora postos à vista de toda a gente, da sua percepção das coisas como
estadista.
É difícil, por estes dias, não
pensar o pior de António Costa. Era sem dúvida possível, e do meu ponto de
vista sensato, pensar mal da sua visão política antes. Mas as razões para isso,
por fortes que fossem, encontravam-se ainda ligadas por inteiro justamente à
política no sentido banal e corrente da palavra. Podia-se discutir a forma como
chegou ao poder, aliando-se a partidos cujo programa político implica a
concepção da democracia parlamentar como algo de provisório a ser superado por
formas mais elevadas de organização política. Mas a ascensão ao poder deu-se
inequivocamente no quadro legal. Podia-se criticar as opções tomadas nos vários
sectores da governação e julgá-las ruinosas. Mas tais críticas eram ainda
críticas originadas em concepções políticas particulares e dirigidas contra
outras concepções políticas. Podia-se julgar que a tão falada “paz social”
tinha sido obtida através de negociações com os parceiros políticos,
nomeadamente o PCP, em benefício das clientelas políticas destes, e que era
inteiramente artificial e, dadas as suas consequências, danosa para o país.
Mas, que se saiba, a Constituição não proíbe estes arranjos. Podia-se julgar
isto e muito mais. Tudo mudou.
No final dos anos cinquenta,
Jack Arnold realizou um dos mais maravilhosos filmes de ficção científica de
todos os tempos, The Incredible Shrinking Man. Conta a história de
um homem que, num passeio de barco, é envolto por uma estranha nuvem que depois
desaparece. A pouco e pouco, Scott (é o nome do homem) começa a minguar a olhos
vistos. O filme relata o progresso da diminuição do seu corpo e da mudança de
percepção das coisas do mundo que essa diminuição acarreta. Quase no fim, a
cena do encontro do seu corpo minúsculo com um gato é particularmente
memorável. Em momento algum do filme o cómico, que aparece aqui e ali, silencia
o que há de verdadeiramente angustiante no destino do personagem. E essa angústia
prende-se em primeiro lugar com a alteração constante da percepção do mundo que
o rodeia.
A ouvir Costa por estes dias,
lembrei-me do filme de Jack Arnold. Como no filme, Costa tem minguado a olhos
vistos. A razão do fenómeno não é qualquer nuvem misteriosa, mas sim os fogos
que mataram pelo menos 64 pessoas em Pedrógão Grande e que se arriscam a matar
mais, nos tempos que vêm, por esse país fora. Ou melhor: a razão do fenómeno
está no próprio Costa, nos limites, subitamente postos à vista de toda a gente,
da sua percepção das coisas como estadista. Ou ainda: da absoluta ausência da
dimensão de estadista que ele exibiu de forma concludente.
Não me estou a referir ao rol
de decisões passadas de Costa, algumas bem recentes, relevantes para o
criminoso caos presente. José Manuel Fernandes elencou algumas ontem, num seu
artigo neste jornal (“Se isto é um primeiro-ministro”). Aquilo de que falo tem mais a ver com o que, também
no Observador, Rui Ramos escreveu terça-feira (“A ignorância de Estado”), e que sugere uma total incapacidade de Costa para assegurar o bem
público. Face a uma catástrofe, tudo aquilo de que Costa é capaz é de recorrer
a toda a espécie de malabarismos que lhe granjearam a dúbia fama de político
excepcionalmente habilidoso. Só que, confrontado com uma realidade não moldável
aos exercícios circenses a que nos habituou e que tanta admiração provocam nos
aficionados da política, a tal habilidade revelou-se aquilo que na sua essência
radicalmente é: um puro jogo destinado a preservar o poder sem qualquer
princípio que respeite verdadeiramente ao bem público. Quer dizer: uma coisa
oca produzida pelo vazio.
António Costa minguou aos
olhos de todos – e minguou também aos seus próprios olhos, por mais que tente
disfarçar este aspecto das coisas. A sua percepção da realidade tenta
adaptar-se em vão àquilo para o qual se encontra radicalmente impreparado, já
que a situação exige uma concepção da política muito diferente daquela que é a
sua, restrita à sabedoria mundana de todos os truques e truquezinhos
conducentes à ascensão ao poder e à sua manutenção.
E ele percebeu patentemente
isso. A inacreditável brutalidade que, depois das piedades da praxe, mostrou na
reação à catástrofe, como se tudo não passasse de um detalhe burocrático, é
sinal disso, sinal só aparentemente paradoxal dessa debilidade descoberta. O
repetido “já está tudo esclarecido”. O rocambolesco episódio do “segredo de
justiça” relativamente ao número e à identidade dos mortos. A denúncia de um
aproveitamento político “absolutamente lamentável” por parte da oposição, que
(a linguagem, logo retomada por Pedro Nuno Santos, é eminentemente significativa)
faz “acusações parvas”. “Parvas” (Pedro Nuno Santos acrescentou “tontas”)? É
linguagem que, no contexto, se use? E a oposição não está ali para, bem ou mal,
criticar o governo quando julga que este merece críticas? Não era isso que o PS
(e o Bloco e o PC) dantes fazia? “Parvas”? Vejam o nível da coisa e o que
revela sobre aquelas cabeças.
A criação da “lei da rolha”,
em que, a partir de Carnaxide, a comandante Patrícia Gaspar, da Autoridade
Nacional da Proteção Civil, se especializou a, com o beneplácito de Costa,
transmitir informações desmentidas por aquilo que se passa no terreno. Tudo
isso são maneiras desesperadas de lidar com a situação que visam trazer os
problemas para o reino das aparências, o único que ele conhece e em que se
sente bem. Mas ele sabe que já não é possível, que a coisa passou para uma
escala onde esses artifícios são vãos.
A incapacidade de adaptar os
seus hábitos de percepção à realidade leva Costa a produzir declarações
espantosas e, no limite, obscenas. No outro dia, facto não suficientemente
notado, afirmou que (cito de cor, mas não falho a ideia) a dimensão da tragédia
não se mede pelo número de vítimas. Como? A dimensão da tragédia não se mede
pelo número de vítimas? Percebe-se bem, é verdade, onde queria chegar. Em pânico
pela discussão criada pela descoberta de uma 65ª vítima revelada pelo Expresso
(há quem diga que haverá mais), Costa decidiu proclamar o seu grande humanismo:
a perda de uma só vítima é já uma tragédia inteira.
É muito bonito falar assim,
mas é voluntariamente esquecer, ou pretender ocultar, que o número de vítimas
tende com quase certeza inteira a acentuar a responsabilidade humana (e a
responsabilidade política de Costa) em toda esta história e que a totalidade do
número de vítimas acrescenta, se possível, uma dimensão ainda mais grave a cada
tragédia individual. Não dou exemplos da falácia do argumento de Costa porque o
seu número é legião.
Não tenho a mínima dúvida que
Costa tem plena consciência que a sua reação a toda a catástrofe dos fogos
provou a sua incapacidade como homem de Estado para defender o bem público. E
não serão a presumível escalada da sua agressividade verbal ou o aumento das
sortidas tentativas de criar uma aparência incoincidente com a realidade que me
farão pensar o contrário. Ele sabe. Sabe que minguou. O cinto protetor do PS e
do PC e do Bloco (Catarina Martins não resistiu a invocar o “aquecimento
global”, um argumento espúrio e estapafúrdio) não lhe vão adormecer a
consciência. Ele sabe. Tirará daí alguma consequência? Perceberá que a sua
minguada percepção da realidade o torna inconveniente para o cargo que ocupa?
Claro que não.
António Costa é um homem
perigoso. Mesmo muito perigoso.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
27-7-2017
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