Helena Matos
Há 45 anos, ciganos e cabo-verdianos
colocaram a Amadora em pé de guerra. Na época culpou-se a censura pela ausência
de notícias. E agora culpa-se quem?
15 de agosto de 1972. Quim
Furtado, de seu nome oficial Joaquim Lopes Furtado, e de alcunha Anania,
natural de Santa Catarina, Cabo Verde, deu entrada no Hospital de São José em
risco de vida.
Agressão à paulada é o
motivo que explica a gravidade do seu estado.
Joaquim Lopes Furtado, de
30 anos (os jornais às vezes não estão de acordo nesta matéria), é um dos 15
mil nascidos em Cabo Verde que tinham vindo em busca de trabalho naquilo que
então chamavam Portugal Europeu ou Metrópole.
Boa parte dos cabo-verdianos
que então se encontram em Lisboa são homens e trabalham na construção
civil seis dias por semana. Vivem nos bairros antigos da cidade, em
pensões-camarata, onde uma cama por noite custava 5$ a 10$ ou, como era o caso
de Quim Furtado, servente de pedreiro, nas barracas próximas dos locais onde
constroem prédios de apartamentos, como a Reboleira, Paço de Arcos e Benfica. E
foi precisamente aí, nas Fontainhas, Venda Nova, que em agosto de 1972 o corpo
de Quim Furtado ficou caído, vítima de graves agressões.
Feitas por quem? A resposta
vai demorar a chegar e vai confrontar Portugal com mudanças que tinha
subestimado.
Joaquim Lopes Furtado foi
agredido a 15 de agosto, a 20 morreu. A 21 começam as notícias sobre o
cabo-verdiano morto à paulada, nas Fontainhas, Venda Nova, Amadora.
Curiosamente durante esses
dias tinham sido publicadas notícias um pouco estranhas sobre factos registadas
na zona onde vivia Quim Furtado: agressões praticadas por grupos armados com
ferros e tábuas cheia de pregos.
O que estava a acontecer na
Venda Nova, Amadora, onde as agressões violentas na rua pareciam estar a
acontecer a um ritmo anormal?
Como em todos os crimes
procurou-se reconstituir o dia do crime e aqueles que o antecederam. Aquilo que
em primeiro lugar se destaca é o dia a dia dos cabo-verdianos então a trabalhar
em Lisboa: de segunda a sábado, trabalhavam. Aos domingos e aos feriados
dormiam até mais tarde, lavavam a roupa e iam ao baile ou tratar de algum
assunto.
O assunto que levou Quim
Furtado mais uns patrícios ao Largo das Fontainhas nesse 15 de agosto de 1972
foi um canivete que Quim Furtado pretendia comprar para, segundo explicam
aqueles que o acompanhavam, cortar «erva de tabaco». Mas Quim Furtado não chega
a comprar canivete algum porque é gravemente ferido no meio da enorme desordem
que se instala na tarde de 15 de agosto na Amadora. Desordem essa em que de um
lado estão homens cabo-verdianos e do outro famílias ciganas.
Como é que tudo começou?
Na verdade, começara dois
dias antes, no domingo 13. Nesse domingo, alguns cabo-verdianos, como Quim
Furtado, tinham estado em Massamá. E em Massamá acabaram esses cabo-verdianos a
discutir com uns homens por causa do jogo da vermelhinha.
Os cabo-verdianos
trabalhavam muito e não gastavam quase nada pois transferiam tudo o que podiam
para as suas famílias em Cabo Verde. Logo tinham sempre dinheiro no bolso o que
os tornava alvos tentadores para quem pelas ruas se dedicava a vender objetos
ou montava mesa de jogo. Como era o caso de um grupo de ciganos então conhecido
nas Fontainhas como folgadores.
No dia 13 entre o joga não
joga, paga, recebe, isto é um engano… não se passou das palavras aos atos.
Mas a 15 alguns dos protagonistas da contenda de Massamá reencontram-se na
Amadora.
Quim Furtado, cabo-verdiano
conhecido como Anania, acaba gravemente ferido e é levado para o hospital de
São José. Do outro lado dois homens desaparecem. Chamavam-lhes o Manuel
Cigano e o Vítor Alcafeu. Eram ciganos.
Em agosto de 1972, Quim
Furtado, a vítima, Manuel Cigano e Vítor Alcafeu, autores do homicídio, obrigam
a que não se pudesse escamotear um problema até então ignorado: a difícil e por
vezes violenta relação que em Portugal se criara entre cabo-verdianos e
ciganos. Mas o drama protagonizado por estes homens dá também conta da
dificuldade e até da incapacidade das autoridades policiais para impor a ordem:
hábeis a reprimir manifestações de estudantes que apenas empunhavam palavras de
ordem, as polícias mostravam-se impotentes perante esta conflitualidade que não
só se mantém como se agrava nos anos seguintes.
Quanto aos jornalistas,
habituados a tudo explicar pela dinâmica da luta de classes, era-lhes difícil
aplicar o esquema dos opressores e dos oprimidos ao que sucedera na Amadora em agosto
de 1972 e mais ainda ao que em 1975 aconteceria em Algés e no Areeiro, quando cabo-verdianos
e ciganos protagonizaram gravíssimos incidentes.
Em 2017, 45 anos depois dos
incidentes da Amadora, o que mudou além das condições de vida dos descendentes
dos protagonistas destes factos?
A tensão entre ciganos e
outros grupos tem continuado a manifestar-se. A alimentar as contendas estão
agora não já as questões da vermelhinha, mas sim o facto de os ciganos terem
passado a ser vistos como subsidiodependentes. Não adianta que no mundo das
redacções e dos observatórios se excomungue quem subscreve tal opinião pois
basta sair dos bairros “betinhos”, andar de transportes públicos (de
preferência por aqueles que passam por bairros sociais), colocar os filhos nas
escolas públicas da Damaia, ou ir a uma urgência a um hospital público para
constatar que esta percepção existe. Ignorá-la apenas a agrava.
(Na verdade a dependência
económica dos ciganos dos apoios estatais é apenas um dos lados da intervenção
estatal no seu modo de vida pois a crescente regulamentação das atividades
económicas não só contribuiu para a sua sedentarização como limitou muito
aquelas que eram as suas atividades tradicionais.)
Outra mudança aconteceu, essa
no mundo das universidades, dos observatórios e das militâncias: desanimados
com os operários, milhares de ativistas trocaram o sonho do fim do capitalismo
pela bem mais viável criminalização das opiniões. Para o efeito foram selecionados
alguns pecados socialmente mortais dos quais o racismo e a discriminação fazem
parte.
Copiosas verbas são afetadas
hoje ao estudo (e acrescento eu à ficção) de discriminações e de
discriminadores. E cada vez teremos de ter mais discriminadores e mais
discriminações pois só assim se justificam mais verbas e mais meios.
Naturalmente os ciganos são objeto
da atenção e geralmente da simplificação dessa espécie de novos cruzados:
vistos invariavelmente como alvo de racismo por parte dos não-ciganos brancos,
os ciganos acabam transformados numa espécie de figuras folclóricas. O racismo
entre ciganos (por exemplo, dos ciganos portugueses para com os romenos) e
entre ciganos e negros não é referido. Um silêncio profundo cai também sobre o
papel dos ciganos (vários deles portugueses) na manutenção de trabalhadores em
regime de escravatura seja em algumas zonas agrícolas ou nas empresas de
segurança – em Espanha chegou a afixar-se o cartaz “Vigilantes gitanos” como
forma de intimação.
O que tem tudo isto a ver com
as declarações de André Ventura? O suficiente para que possa dizer duas coisas.
A primeira delas prende-se com as críticas à forma como o candidato do PSD à
Câmara de Loures colocou a questão dos ciganos. É unânime que não foi a forma
mais adequada, que foi redutora, mas convém perguntar: em que areópagos,
fóruns, seminários, colunas de opinião, debates… se colocou devidamente a
questão da percepção, justa ou injusta, da comunidade cigana (seja essa
comunidade o que for, pois tanto quanto sei em Portugal esse tipo de
identificação étnica não é feito nos nossos documentos)? Pois é: não se tem
querido falar do assunto, táctica que é o melhor caminho para que se acabe a
falar mal dele. Foi esse silêncio que deixou o caminho livre para as palavras
de André Ventura.
Quanto à questão da
generalização ela está obviamente presente nas palavras de André Ventura, mas
não está nem mais nem menos presente do que na forma generalizadora como se
constituem turmas de alunos ciganos, se criam atividades extracurriculares para
ciganos ou se atribui habitação social a ciganos.
Digamos que generalizações há
muitas. Simplesmente algumas não são apenas omitidas, toleradas, como até
incentivadas, e outras diabolizadas.
PS. A
propósito do filme “Dunkirk” que trata da evacuação de 340 mil militares
britânicos e franceses de Dunquerque em 1940, logo houve quem apontasse a
ausência de mulheres e de atores não brancos entre os protagonistas. É óbvio
que será necessária muita imaginação para conseguir colocar mulheres ou negros
na evacuação de Dunquerque, mas exercícios igualmente imaginativos são levados
a cabo todos os dias para fazer de conta que no século XVI tínhamos notáveis
escritoras ou que a escravatura foi introduzida em África pelos brancos
nomeadamente pelos portugueses.
Título e Texto: Helena Matos,
Observador, 23-7-2017
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