domingo, 23 de julho de 2017

Não deixes para amanhã o que podes discutir hoje

Helena Matos

Há 45 anos, ciganos e cabo-verdianos colocaram a Amadora em pé de guerra. Na época culpou-se a censura pela ausência de notícias. E agora culpa-se quem?

15 de agosto de 1972. Quim Furtado, de seu nome oficial Joaquim Lopes Furtado, e de alcunha Anania, natural de Santa Catarina, Cabo Verde, deu entrada no Hospital de São José em risco de vida.

Agressão à paulada é o motivo que explica a gravidade do seu estado.

Joaquim Lopes Furtado, de 30 anos (os jornais às vezes não estão de acordo nesta matéria), é um dos 15 mil nascidos em Cabo Verde que tinham vindo em busca de trabalho naquilo que então chamavam Portugal Europeu ou Metrópole.

Boa parte dos cabo-verdianos que então se encontram em Lisboa são homens e trabalham na construção civil seis dias por semana. Vivem nos bairros antigos da cidade, em pensões-camarata, onde uma cama por noite custava 5$ a 10$ ou, como era o caso de Quim Furtado, servente de pedreiro, nas barracas próximas dos locais onde constroem prédios de apartamentos, como a Reboleira, Paço de Arcos e Benfica. E foi precisamente aí, nas Fontainhas, Venda Nova, que em agosto de 1972 o corpo de Quim Furtado ficou caído, vítima de graves agressões.

Feitas por quem? A resposta vai demorar a chegar e vai confrontar Portugal com mudanças que tinha subestimado.

Joaquim Lopes Furtado foi agredido a 15 de agosto, a 20 morreu. A 21 começam as notícias sobre o cabo-verdiano morto à paulada, nas Fontainhas, Venda Nova, Amadora.

Curiosamente durante esses dias tinham sido publicadas notícias um pouco estranhas sobre factos registadas na zona onde vivia Quim Furtado: agressões praticadas por grupos armados com ferros e tábuas cheia de pregos.

O que estava a acontecer na Venda Nova, Amadora, onde as agressões violentas na rua pareciam estar a acontecer a um ritmo anormal?

Como em todos os crimes procurou-se reconstituir o dia do crime e aqueles que o antecederam. Aquilo que em primeiro lugar se destaca é o dia a dia dos cabo-verdianos então a trabalhar em Lisboa: de segunda a sábado, trabalhavam. Aos domingos e aos feriados dormiam até mais tarde, lavavam a roupa e iam ao baile ou tratar de algum assunto.

O assunto que levou Quim Furtado mais uns patrícios ao Largo das Fontainhas nesse 15 de agosto de 1972 foi um canivete que Quim Furtado pretendia comprar para, segundo explicam aqueles que o acompanhavam, cortar «erva de tabaco». Mas Quim Furtado não chega a comprar canivete algum porque é gravemente ferido no meio da enorme desordem que se instala na tarde de 15 de agosto na Amadora. Desordem essa em que de um lado estão homens cabo-verdianos e do outro famílias ciganas.
Como é que tudo começou?

Na verdade, começara dois dias antes, no domingo 13. Nesse domingo, alguns cabo-verdianos, como Quim Furtado, tinham estado em Massamá. E em Massamá acabaram esses cabo-verdianos a discutir com uns homens por causa do jogo da vermelhinha.

Os cabo-verdianos trabalhavam muito e não gastavam quase nada pois transferiam tudo o que podiam para as suas famílias em Cabo Verde. Logo tinham sempre dinheiro no bolso o que os tornava alvos tentadores para quem pelas ruas se dedicava a vender objetos ou montava mesa de jogo. Como era o caso de um grupo de ciganos então conhecido nas Fontainhas como folgadores.

No dia 13 entre o joga não joga, paga, recebe, isto é um engano… não se passou das palavras aos atos. Mas a 15 alguns dos protagonistas da contenda de Massamá reencontram-se na Amadora.

Quim Furtado, cabo-verdiano conhecido como Anania, acaba gravemente ferido e é levado para o hospital de São José. Do outro lado dois homens desaparecem. Chamavam-lhes o Manuel Cigano e o Vítor Alcafeu. Eram ciganos.

Em agosto de 1972, Quim Furtado, a vítima, Manuel Cigano e Vítor Alcafeu, autores do homicídio, obrigam a que não se pudesse escamotear um problema até então ignorado: a difícil e por vezes violenta relação que em Portugal se criara entre cabo-verdianos e ciganos. Mas o drama protagonizado por estes homens dá também conta da dificuldade e até da incapacidade das autoridades policiais para impor a ordem: hábeis a reprimir manifestações de estudantes que apenas empunhavam palavras de ordem, as polícias mostravam-se impotentes perante esta conflitualidade que não só se mantém como se agrava nos anos seguintes.

Quanto aos jornalistas, habituados a tudo explicar pela dinâmica da luta de classes, era-lhes difícil aplicar o esquema dos opressores e dos oprimidos ao que sucedera na Amadora em agosto de 1972 e mais ainda ao que em 1975 aconteceria em Algés e no Areeiro, quando cabo-verdianos e ciganos protagonizaram gravíssimos incidentes.

Em 2017, 45 anos depois dos incidentes da Amadora, o que mudou além das condições de vida dos descendentes dos protagonistas destes factos?

A tensão entre ciganos e outros grupos tem continuado a manifestar-se. A alimentar as contendas estão agora não já as questões da vermelhinha, mas sim o facto de os ciganos terem passado a ser vistos como subsidiodependentes. Não adianta que no mundo das redacções e dos observatórios se excomungue quem subscreve tal opinião pois basta sair dos bairros “betinhos”, andar de transportes públicos (de preferência por aqueles que passam por bairros sociais), colocar os filhos nas escolas públicas da Damaia, ou ir a uma urgência a um hospital público para constatar que esta percepção existe. Ignorá-la apenas a agrava.

(Na verdade a dependência económica dos ciganos dos apoios estatais é apenas um dos lados da intervenção estatal no seu modo de vida pois a crescente regulamentação das atividades económicas não só contribuiu para a sua sedentarização como limitou muito aquelas que eram as suas atividades tradicionais.)

Outra mudança aconteceu, essa no mundo das universidades, dos observatórios e das militâncias: desanimados com os operários, milhares de ativistas trocaram o sonho do fim do capitalismo pela bem mais viável criminalização das opiniões. Para o efeito foram selecionados alguns pecados socialmente mortais dos quais o racismo e a discriminação fazem parte.

Copiosas verbas são afetadas hoje ao estudo (e acrescento eu à ficção) de discriminações e de discriminadores. E cada vez teremos de ter mais discriminadores e mais discriminações pois só assim se justificam mais verbas e mais meios.

Naturalmente os ciganos são objeto da atenção e geralmente da simplificação dessa espécie de novos cruzados: vistos invariavelmente como alvo de racismo por parte dos não-ciganos brancos, os ciganos acabam transformados numa espécie de figuras folclóricas. O racismo entre ciganos (por exemplo, dos ciganos portugueses para com os romenos) e entre ciganos e negros não é referido. Um silêncio profundo cai também sobre o papel dos ciganos (vários deles portugueses) na manutenção de trabalhadores em regime de escravatura seja em algumas zonas agrícolas ou nas empresas de segurança – em Espanha chegou a afixar-se o cartaz “Vigilantes gitanos” como forma de intimação.

O que tem tudo isto a ver com as declarações de André Ventura? O suficiente para que possa dizer duas coisas. A primeira delas prende-se com as críticas à forma como o candidato do PSD à Câmara de Loures colocou a questão dos ciganos. É unânime que não foi a forma mais adequada, que foi redutora, mas convém perguntar: em que areópagos, fóruns, seminários, colunas de opinião, debates… se colocou devidamente a questão da percepção, justa ou injusta, da comunidade cigana (seja essa comunidade o que for, pois tanto quanto sei em Portugal esse tipo de identificação étnica não é feito nos nossos documentos)? Pois é: não se tem querido falar do assunto, táctica que é o melhor caminho para que se acabe a falar mal dele. Foi esse silêncio que deixou o caminho livre para as palavras de André Ventura.

Quanto à questão da generalização ela está obviamente presente nas palavras de André Ventura, mas não está nem mais nem menos presente do que na forma generalizadora como se constituem turmas de alunos ciganos, se criam atividades extracurriculares para ciganos ou se atribui habitação social a ciganos.

Digamos que generalizações há muitas. Simplesmente algumas não são apenas omitidas, toleradas, como até incentivadas, e outras diabolizadas.

PS. A propósito do filme “Dunkirk” que trata da evacuação de 340 mil militares britânicos e franceses de Dunquerque em 1940, logo houve quem apontasse a ausência de mulheres e de atores não brancos entre os protagonistas. É óbvio que será necessária muita imaginação para conseguir colocar mulheres ou negros na evacuação de Dunquerque, mas exercícios igualmente imaginativos são levados a cabo todos os dias para fazer de conta que no século XVI tínhamos notáveis escritoras ou que a escravatura foi introduzida em África pelos brancos nomeadamente pelos portugueses.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 23-7-2017

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