Alexandre Homem Cristo
Gentil Martins, médico, não pode falar como
cidadão e dar a sua opinião. Mas Ferro Rodrigues, presidente da AR, pode ter
“posições pessoais” com críticas ao Ministério Público. Algo não bate certo.
O caso à volta das declarações
de Gentil Martins tem interesse porque traz à tona três aspectos que definem o
mau estado do nosso debate público e da nossa cultura democrática – dois óbvios
e um nem por isso. Primeiro, revela a força do preconceito mesmo entre homens
da ciência. Segundo, expõe os tiques despóticos de quem se alega paladino da
liberdade e da democracia. Terceiro, exibe as diferenças de tratamento (de
tolerância ou de intolerância) que situações análogas merecem consoante os
protagonistas. Vamos por partes.
Primeiro ponto. Em entrevista
ao Expresso, o médico e ex-bastonário da Ordem dos Médicos definiu a homossexualidade como uma “anomalia” e um “desvio de personalidade”,
comparando-a ao sadomasoquismo e às “pessoas que se mutilam”. Gentil Martins
poderia ter-se limitado à questão de valores (opor-se ao casamento entre
homossexuais, por exemplo) e, sendo uma posição legítima, ninguém lhe poderia
apontar o dedo. Mas, ao cair na tentação de um diagnóstico, caiu objetivamente
em erro. Primeiro, porque, tendo sido objeto de estudo, a ciência não define a
homossexualidade como uma perturbação médica (neste caso, psiquiátrica) – pelo
que a validade da sua qualificação enquanto “anomalia” ou da comparação com
perturbações psiquiátricas é negada pela própria medicina. E porque, por não
ter sustentação científica, a sua declaração é inequivocamente discriminatória,
pois estabelece determinada orientação sexual como anomalia biológica. Se
dúvidas houvesse, bastaria aplicar a mesma qualificação de “anomalia” a
questões de raça, por exemplo, para captar a sua dimensão discriminatória. Isto
deveria ser fácil de entender.
Segundo ponto. Gentil Martins
pode dizer o que bem quiser. Tem liberdade para fazer afirmações certas ou
erradas, elevadas ou ignóbeis, sofisticadas ou básicas, inspiradoras ou
repulsivas. Se assim o entender, tem também o direito de lançar declarações no
espaço mediático que constituam crime público, por contrariarem a legislação
vigente ou a própria Constituição. Mas essa liberdade vem com responsabilidade.
Importa nunca perder de vista uma distinção fundamental entre o direito à
liberdade de expressar opiniões e a responsabilização num Estado de Direito
pelas afirmações proferidas quando ofensivas para terceiros. Assim sobrevive o
discurso das minorias. É, por isso, fácil discordar de Gentil Martins, mas
ainda mais importante defender o seu direito a estar errado e, se isso se
aplicar, a ser responsabilizado pelo teor das suas declarações – pelos seus
pares na Ordem dos Médicos ou até, para aqueles que identificarem aqui um crime
público, pelo Ministério Público. Nas nossas comunidades políticas, a liberdade
e a responsabilidade coexistem e andam de mãos dadas.
Inquietante, pois, a fúria
persecutória que um pouco por todo o lado se abateu contra Gentil Martins,
pretendendo negar-lhe a liberdade de dizer o pensa e, quase, de o forçar ao
exílio. Instaurou-se um julgamento popular por delito de opinião. E esse é o pior
caminho. Ele que diga o que quiser e que as instituições democráticas ajam em
conformidade – é assim que funciona a democracia. Tudo o resto, que é o que
temos tido, são meros tiques despóticos.
Terceiro ponto. Pode alguém
com prestígio e reconhecimento social falar enquanto cidadão, sem que as suas
declarações sejam extrapoladas para a sua atividade profissional? Em Portugal,
depende. A Gentil Martins, que é médico, mas não ocupa cargo institucional de
representação da sua classe, não foi concedido esse estatuto de falar enquanto
cidadão e de expor a sua opinião sem posteriores julgamentos acerca de como
exerce a sua atividade. Mas, há dias, Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia
da República, pôde pendurar as suas funções institucionais e, através de “posições pessoais”, criticar duramente o Ministério Público em casos que envolvem o
governo. Logo ele que, ocupando o segundo lugar da hierarquia do Estado, tem um
dever de isenção, que pretendeu suspender para abalar a separação de poderes no
regime. E sem que se ouvisse sequer um burburinho. Há aqui algo que não bate
certo: uns podem tudo, outros não podem nada. O ar está a tornar-se irrespirável.
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