Helena Garrido
A ação do Governo nos incêndios e em
Tancos, o caso Gentil Martins e as críticas aos jornalistas são acontecimentos
e sintomas que nos convidam a refletir. Hoje é com os outros. Amanhã não
sabemos.
Os últimos meses têm sido
marcados por um conjunto de acontecimentos e sintomas que nos deviam preocupar
a todos, como sociedade. O facto de a economia estar a crescer e de o emprego
subir não nos deve fazer esquecer que o desenvolvimento não se faz apenas pela
prosperidade.
Um país desenvolvido tem de
ter instituições fortes, credíveis e independentes. Tem de ser capaz de
responsabilizar quem não cumpre os seus deveres profissionais. Tem de ter um
Governo que defende a transparência e a liberdade de informação. Tem de
conseguir viver com a diferença de opiniões e convicções por mais disparatadas
que possam ser. Tem de ter elites e lideranças que sabem fazer a diferença
entre racismo e críticas a quem não cumpre a lei e assim é deixado. Não é
apenas em Portugal que vemos tudo isto, uma espécie de trumpismo ao contrário.
É possível identificar seis
grandes acontecimentos que marcaram recentemente a nossa vida pública e que
recomendam um apelo à reflexão.
A descredibilização das
instituições é o primeiro a ser citado por se ter iniciado mais cedo. Começou
com o ataque ao Banco de Portugal e ao Conselho de Finanças Públicas, as duas
únicas instituições que, concordando ou discordando delas, tinham peso no
espaço público e naquilo que diziam.
O Banco de Portugal já vinha
bastante abalado do anterior Governo pela intervenção no BES, com grupos, por
vezes com interesses opostos, unidos por críticas à sua atuação. Ou porque atuou
tarde demais, ou porque não se devia ter atuado, ou por tendo-se atuado
dever-se-ia ter-se protegido e envolvido o Governo nessa atuação – como aliás
aconteceu na nacionalização do BPN, apresentada pelo então governador Vítor
Constâncio e pelo ex-ministro Fernando Teixeira dos Santos. Mas os ataques de
que foi alvo pelo Governo de António Costa foram bastante mais violentos, só se
acalmando quando o governador Carlos Costa cedeu – acabou por não nomear exatamente
quem queria para a administração – e quase desapareceu do espaço público.
Repare-se que não se está aqui
a dizer que o Banco de Portugal fez tudo bem. Mas há um ponto em que se tem de
reconhecer que o Banco de Portugal teve coragem a par com o
ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho (ou até apoiado por ele): enfrentou
Ricardo Salgado. Como o ex-presidente do BES disse na entrevista que deu ao Dinheiro Vivo, com qualquer outro Governo o GES teria sido salvo. Com
dinheiro dos contribuintes, pressupõe-se. Vai-se gastar mais dinheiro? Ninguém
sabe. A diferença está na hierarquia de valores: salvar o GES era salvar a
família Espírito Santos, salvar o BES é salvar as poupanças das famílias. Há
momentos na vida de uma sociedade, como na vida de cada um, em que devemos
preferir pagar para manter os nossos valores.
O Conselho de Finanças
Públicas foi a vítima seguinte. Teodora Cardoso queria que um dos lugares do
conselho fosse ocupado por Teresa Ter-Minassian, responsável do FMI pelos
primeiro e segundo plano de estabilização e conhecedora da economia portuguesa.
Uma personalidade destas daria sem dúvida ao Conselho credibilidade e
independência. Mas António Costa não quis. Para o seu lugar foi Paul de Grauwe,
professor na London School of Economics. Não está em causa o seu curriculum,
mas De Grauwe não conhece a economia portuguesa como Ter-Minassian. E assim se
perdeu a oportunidade de dar mais força a uma instituição fundamental, num país
que tem caído nos braços do FMI por erros na política orçamental, por indisciplina
financeira. O que isto revela é não só o desinteresse – para dizer o mínimo –
em dar ao país instituições fortes, como também a total ausência de vontade
para corrigir os erros que estamos a cometer há décadas.
A indiferença pela força das
instituições verifica-se ainda nas nomeações para a Anacom com o Governo a ver aprovado pelo Parlamento apenas quem propôs para Presidente, João Cadete de Matos – cuja nomeação para a administração
do Banco de Portugal ficou pelo caminho. Vamos ver o que acontece na nova
votação na Assembleia.
Os acontecimentos associados à
tragédia de Pedrógão Grande são também um exemplo de falta de transparência, de
responsabilidade e de preocupação com a imagem e comunicação. Só se pode
compreender tudo o que se tem passado – como a teimosia em não identificar as
vítimas – admitindo a hipótese de o Governo querer descolar a sua imagem
daquilo que aconteceu. Hipótese que é reforçada pelo facto de termos sabido
que o Governo (ou o PS) encomendou um “focus group” para saber se a sua popularidade tinha sido afetada pelo incêndio. Dizer que quem fala do assunto está a aproveitar-se da
tragédia é também, em si, um bom exemplo de uma estratégia
desresponsabilização. E atenção, não se está a dizer que o Governo é o
responsável, porque não é. Mas pede-se transparência e responsabilização, além
de ação.
A ação a que assistimos foi a
aprovação de legislação que condiciona a plantação de eucaliptos que, se
analisada nos seus efeitos, terá mais impacto na população envelhecida do que nos
supostos alvos – a indústria da pasta de papel – ou na prevenção de incêndios.
Ainda sobre os incêndios, que
este Verão parecem não abandonar o País, a outra ação a que assistimos foi à
designada “lei da rolha”. O Governo – sim, por que a Proteção Civil não o faria
sem a aprovação do Governo – impede agora os bombeiros de falarem para o país.
Sim para o país, porque um dos papéis dos jornalistas é fazer chegar a
informação à população em geral. Mais uma vez o Governo faz da comunicação uma
das suas preocupações, como se tudo fosse resolvido e controlado com imagem e
comunicação.
No terceiro caso, o roubo em
Tancos, vemos também o controlo de comunicação como a principal reação. Depois
de o Chefe do Estado-Maior do Exército ter demitido cinco comandantes em
Tancos, depois de o Presidente da República ter ido a Tancos, depois de
conhecermos a lista do material roubado através de um jornal espanhol, o
primeiro-ministro junta os chefes militares e o Chefe do Estado-Maior General
das Forças Armadas à frente das câmaras de televisão para desdramatizar a
situação. Fica na memória o valor do material roubado: pouco mais de 30 mil
euros. Foi no mínimo triste ver os militares a sujeitarem-se a uma tal situação
e ter de admitir que até as Forças Armadas já se deixaram capturar e foram
contaminadas pela desresponsabilização.
No universo da classe política
assistimos ainda neste já doloroso verão a mais uma facada na sua
credibilidade, com o que se passou na comissão parlamentar de inquérito à
capitalização da CGD. O PS, o PCP e o Bloco a inviabilizaram o acesso a
informação que permitisse perceber quem decidiu e porquê os empréstimos mais
ruinosos concedidos pela CGD, com tácticas jurídicas dignas dos advogados que
vencem casos por via processual.
Defender que é por causa de o
banco estar em funcionamento que não se podem apurar responsabilidades é dar à
banca um estatuto que mais nenhuma instituição tem e limitar a
responsabilização a casos em que já tenha falido. A mensagem subjacente é que
os bancos podem fazer tudo, que nada será politicamente inquirido numa comissão
parlamentar se não tiver colapsado.
As reações à entrevista do candidato do agora só do PSD a Loures,
André Ventura é o quinto caso deste Verão que nos devia fazer pensar (vale a
pena ler a entrevista e não apenas o título). O que diz é do conhecimento de
quem vive em pequenas comunidades com determinado tipo de pessoas que pertencem
à etnia cigana (é importante dizer que não são “os ciganos” mas sim alguns, que
entram mais na categoria de bandidos). Funcionários das autarquias e os
habitantes de algumas localidades sabem que é difícil, se não impossível, fazer
com que essas pessoas cumpram a lei. Assim como sabem que a polícia evita
intervir. Só por hipocrisia ou ignorância é que se pode acusar alguém de
racismo por ter identificado um problema que precisa de ser resolvido.
A entrevista do cirurgião António Gentil Martins é o
quinto caso, que ilustra característica dos tempos atuais: a intolerância.
Claro que o que disse não merece o consenso da comunidade científica nem a
aprovação da maioria dos portugueses – assim o reflete o facto de o casamento
entre pessoas do mesmo sexo ter sido aprovado no Parlamento, por exemplo. Mas a
democracia e a liberdade significam que Gentil Martins, como qualquer outra
pessoa, tem o direito a dar a sua opinião, por errada e absurda que seja. E
esse é um princípio que temos de defender, o da liberdade de opinião. Discordar
sim, mas estar disposto a lutar pelo direito à opinião de dizer o que diz quem
discorda de nós, usando livremente uma citação atribuída a Voltaire, como lutar
pelo direito a ser diferente.
Finalmente, mas não menos
importante, temos assistido nos últimos tempos a um crescendo de agressividade
contra o jornalismo e os jornalistas. (Declaração de interesses: sou
jornalista). Sim, os jornalistas cometem erros como todos os profissionais. O
número de erros cometidos hoje é maior do que no passado? É provável. A
velocidade imposta pela informação em tempo real, a concorrência e a crise
financeira em que se encontram os media levam a admitir que se cometam mais
erros. Mas é o jornalismo em geral menos rigoroso do que no passado? Em alguns
temas que até estariam ausentes dos media no passado é provável – o recente
caso do vídeo de Paco Bandeira é exemplo disso. Mas nas matérias importantes, o
rigor da informação transmitida é até superior, quer pelas ferramentas que hoje
se tem para cruzar fontes, quer pela possibilidade de disponibilizar nos sites
algumas fontes dessa informação. Claro que esse poder de informar melhor – como
por exemplo, o de saber quase de imediato que um site espanhol divulgou a lista
das armas roubadas em Tancos – incomoda muito mais o poder.
Estamos a olhar para sintomas
na nossa sociedade que nos deviam preocupar. Porque, para agora citar
livremente uma frase atribuída a Bertolt Brecht, hoje o que se passa pode estar
a ter efeitos negativos na outra tribo ou partido que não é o nosso. Ou pode
estar a condicionar a opinião de pessoas de quem discordamos. Amanhã pode
começar a acontecer com os nossos amigos. Um dia estará a acontecer conosco. E
já pode ser tarde demais.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
27-7-2017
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-