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Ilustração: Sofia Dias |
Maria Schneider morreu há dias. Os jornais (e televisões, imagino) não se cansaram de a lembrar. Mas foram as reacções no mundo do Facebook que me levaram a escrever esta crónica.
O filme perturba pela frieza. Muitos ter-se-iam revisto na vida de amantes, outros chocaram-se até hoje. Há de certeza quem sonhe ter uma relação assim, sem muitas palavras, só sexo. Só libertação.
O que me leva a escrever este texto foi o que li de gente muito diferente. Gente moderna e arejada que se referia a Maria Schneider como «a da manteiga». Então venha agora a minha perplexidade em forma de palavras: esta mulher foi gozada a vida inteira porque um dia fez sexo anal com Marlon Brando - e tanta gente, anos a fio, a dar o cu por tão pouco - e na altura da morte dela ainda a lembraram assim? Sim, eu li comentários de conhecidos meus (alguns gays) que se referiram a ela desta forma: «a da manteiga», e isto chocou-me verdadeiramente. Esta mulher foi estigmatizada o resto da vida por isto, e nem na hora da morte puderam recordá-la de outra forma?
Acho que todos conhecemos esta terrível sensação da irreversibilidade de um momento. Quando já não podemos voltar atrás. Quando tudo daríamos para fazer diferente e o presente arruma o passado com desprezo. Aconteceu e não há nada a fazer. Quando me deparo com essa irreversibilidade, luto pela atitude: encarar o erro e torná-lo leve. Penso que nos dias seguintes ainda acordarei com um desconforto qualquer, mas que em breve essa sensação terá desaparecido. Tirar importância às coisas que julgámos importantes é um segredo de vida.
Para esta mulher que um dia cedeu ao poderoso Brando estes dias de desconforto devem ter-se sucedido. Um erro pesado.
Para esta mulher que um dia cedeu ao poderoso Brando estes dias de desconforto devem ter-se sucedido. Um erro pesado.
Li eu nos jornais a frase que um dia foi dela: «Nunca se deve tirar a roupa para um homem de meia-idade que diz que está a filmar arte.» Acho que todos percebemos o que ela queria dizer.
A notícia da sua morte chocou-me (para além dos consequentes comentários) por ter ficado a saber que foi sempre infeliz nestes anos que viveu. Passagens erráticas pelo cinema, tentativa de suicídio e drogas. E nunca mais se permitiu fazer cenas de nu. Foi isto que li. Foi muito mais do que isto o que senti.
Fiquei profundamente triste com uma sociedade que continuou a castigar uma mulher por uma cena que fez história no cinema. Fiquei mais triste ainda por ter lido infâmias de gente que ainda anda a lutar por ser aceite.
Fosse com manteiga - ou hoje em dia com lubrificantes ou outras ajudas, não vejo diferença nisto. Quando vi o filme (o filme é essencialmente triste ou foi assim que o senti) retive muito mais do que uma simples cena. Agora que penso, nunca me vi a julgar a mulher-actriz por esse momento. Tudo fez parte de um momento de intensidade libertadora.
Sabem aquela frase que nos acompanhou na escola: «quem o diz, é quem o é»? Ela volta a mim muitas vezes por descobrir tantas incongruências nos falsos puritanos. Sempre que puder, hei-de desmascará-los. Julgam os outros que se expõem mas encobrem na condenação a sua vergonha por também o fazerem.
Espero que Maria Schneider descanse, por fim, em paz. E que mereça o céu se não o teve na Terra. E que conheça um Brando que a convide a fazer só o que ela quiser, quando quiser. Quando se sentir preparada.
O amor (e o sexo) pode ficar em banho-maria, porque o verdadeiro espera o tempo que for necessário.
Oh God, make me good, but not yet!
Cidália Dias, Diário de Notícias
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