Rui Ramos
Passos Coelho sabe uma grande
coisa, António Costa sabe muitas pequenas coisas. O que é que convém ao país?
Ainda se lembram do debate de
anteontem? Talvez não. Mas deu jeito a variadas famílias, na véspera,
antecipá-lo como um duelo decisivo, não só porque as televisões pretendiam
recordes de audiência, mas porque, após tantas sondagens tecnicamente empatadas,
até teria a sua graça haver um desempate. Por tudo isso, houve mesmo que
inventar um vencedor na noite, e esse vencedor foi, de acordo com um
compreensível princípio de justiça, quem mais necessidade tinha de vencer:
António Costa. Na manhã seguinte, porém, a vitória já não parecia tão clara.
Como as flores de certas plantas raras, não durou uma noite.
Ganhar um debate, para quem
precisa de ganhar de qualquer maneira, não é complicado: basta fazer o
indispensável para que a claque se sinta à vontade ao clamar vitória. Há um
truque: estar sempre ao ataque, disparar sobre tudo, não parar de chutar à
baliza. Nem é preciso acertar: basta mostrar agitação. Foi o que Costa fez,
aproveitando, aliás, a previsível opção de Passos pela impassibilidade do
estadista. Costa não teve escolha: depois de tantos azares de pré-campanha,
sentiu certamente que o PS lhe estava a escapar. O modo exasperado como
procurou marcar pontos no debate é talvez a prova mais clara da sua fraqueza.
Entretanto, o país, pela voz
dos seus comentadores, declarava-se pouco “esclarecido”. O facto é que a
situação do país é tal que uma hora de debate nunca seria suficiente para o
“esclarecer”. Em 2011, quando veio a troika, já levávamos dez anos de crise:
desde 2001 que havia défices excessivos, que a economia divergia da Europa, que
o desemprego subia, e que o endividamento aumentava. Daí, aliás, a austeridade
de Manuela Ferreira Leite em 2002-2004, e os PECs de Sócrates. Nada começou em
2011, e também nada vai acabar em 2015. Tal como em ajustamentos anteriores,
pagámos mais impostos e exportámos mais. Mas os problemas não parecem
resolvidos, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em 1986, depois do
programa do FMI de 1983-1985. Por isso, talvez para muitos portugueses não seja
claro se devem continuar com quem executou o ajustamento, ou dar uma
oportunidade a quem esteve contra.
Passos Coelho fez do
ajustamento a sua “missão”. Durante quatro anos, aguentou tudo, não se foi
abaixo, mesmo quando muitos à sua volta perdiam a coragem. Convenceu-se que era
fundamental recuperar o crédito, o que só podia ser conseguido em colaboração
com os credores no quadro da União Europeia. Em 2011, pouca gente acreditara na
viabilidade do ajustamento. O sucesso, até por inesperado, impressionou: fez o
PSD e também o CDS aceitarem a “missão” de Passos. Hoje, os anti-passistas da
direita estão isolados, ou em trânsito para o PS. Passos pode permitir-se ficar
no mesmo sítio, sem variar os temas nem levantar a voz.
António Costa vive outra vida.
A sua expectativa, o ano passado, era ser acolhido consensualmente. Não o foi.
Viu-se forçado a andar pelos mais variados caminhos e atalhos. Aproximou-se e
afastou-se do Syriza. Arranjou Nóvoa, mas também Centeno. Grita contra a
“austeridade”, mas quer parecer responsável. Precisa de se distanciar de
Sócrates, mas não o pode renegar. A sua guerra tem duas frentes: de um lado, o
PCP, o BE e os novos radicais disputam-lhe o voto de esquerda; do outro, o
governo compete pelo voto de “centro”. Pior: o próprio PS é um baralho de
correntes opostas e de facções quase incompatíveis. Tudo isso significa, para
Costa, uma ginástica tremenda. Precisa de ser e dizer demasiadas coisas.
O debate desta semana
confrontou assim duas maneiras de ser. De um lado, Passos Coelho, mais ou menos
rígido e solene, avesso a aventuras, preocupado em lembrar o que lhe parece
essencial, com muitas explicações, embora por vezes sem eloquência nem rasgo,
como durante a segunda parte do debate. Do outro lado, António Costa, cheio de
artes e de artimanhas, desesperado, e portanto disposto a tudo, mas
frequentemente sem critério, como durante a primeira parte do debate, em que
não evitou o ridículo (“foi o PSD quem chamou a troika!”).
Isaiah Berlin, inspirado por
um velho adágio grego, dividiu um dia os intelectuais em ouriços e raposas: a
raposa sabe muitas pequenas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa. Passos
sabe uma grande coisa, Costa sabe muitas pequenas coisas. Uma das questões para
os portugueses é saber se, neste momento, lhes convém mais um ouriço ou uma
raposa.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
11-9-2015
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