Maria João Avillez
Não é verdade que todos os dias a
geringonça rescreve a história da anterior governação fazendo, com indecência e
veneno, uma ficção do que ia sendo uma tragédia real?
Não se impacienta, não se
inquieta, não se espanta, não se altera. Ignora rumores, é alheio à intriga,
descarta o que dizem dele, bem ou mal, mal ou bem. Parece nada esperar, mas
talvez espere tudo. Passos Coelho [foto] confunde? Sim, para dizer o mínimo.
Ou seja: ei-lo a usar hoje os
mesmíssimos instrumentos de navegação que usou na travessia 2011/2015.
Fornecidos quer pela sua própria natureza, quer pela crueza das circunstâncias
da viagem, os instrumentos revelaram-se, sabemo-lo bem, indispensáveis ao mau
tempo de então. E a avaliar pelos votos e resultados obtidos, a liderança sem
estados de alma e os instrumentos provaram acerto: quatro anos depois Passos
Coelho voltou a ser o primeiro.
Não me interessa, neste
momento, saber se uns já esqueceram a dureza e crueza da viagem, se outros
ainda acham que a rota deveria ter sido “diferente” ou se outros ainda exultam
com selfies e “ronaldices”, achando hoje a vida mais bela que
ontem.
O que me interessa agora –
quando a travessia já não é a mesma, nem os mares iguais – é abordar o
(arriscado) critério oposicionista de Passos Coelho. Uma escolha que produz
legitimas dúvidas e consente demasiadas perplexidades ao persistir o líder do
PSD no uso dos mesmos instrumentos de navegação e acreditando até na sua
bondade. Acreditando contra ventos e marés (dos quais não toma nota); contra
aquilo que se acha a lógica das coisas (mas ele não acha); contra o que
recomendaria o menu do bom opositor (mas ele não o lê).
Contestação interna? Tardias
soluções autárquicas? Falta de resposta? Falta de discurso? Falta de escolhas?
Não. Primeiro, a liderança tem o seu ritmo: esperar com infinita paciência que
o mundo comungue do seu desagrado e dê razão às suas críticas. Sem estados de
alma uma vez mais, tal a certeza que esse dia chegará e seja quem for que lá
esteja sentado na chefia das tropas; segundo, também tem os seus calendários:
decide quando quer e não em função da jocosa solicitude da opinião publicada,
supostamente “preocupada” com os “atrasos” do PSD na questão autárquica. Só quando
se tornou evidente que a concelhia de Lisboa não resolvia o problema da capital
é que a liderança interveio. Não que ela achasse que teria sido conveniente
mais pressa na escolha e divulgação de candidatos. Pelo contrário: “não achava
de todo” (Passos Coelho dixit), por não encontrar sombra de
“utilidade” nessa reclamada antecedência. Por outras palavras: entregar,
escolhas e escolhidos, às vozes do mundo e deixá-los meses a fio ao lume da
crítica, da enviesada exposição mediática e da intriga… para quê?
E finalmente o PSD, sim, tem
um discurso que usa, aplica e pratica. É que ao contrário do que diz o poder e
os seus companheiros da esquerda radical, as intervenções de Pedro Passos
Coelho não visam estragar a festa da geringonça mas demonstrar que é a festa
que está estragada de origem. Veio com defeito de fabrico. O defeito – e o
fabrico – dispensam o PSD de mudar a lógica, a linha e o fundamento do seu
discurso e porventura ainda mais, de procurar outro.
E quanto à falta – gritante, a
meu ver – da outra metade do discurso, isto é, de futuro ou de algo de parecido
com “o que ele faria no futuro se”, Passos Coelho cuida e zela pela herança que
deixou, que é outro modo de falar do futuro: não é verdade que todos os dias a
geringonça rescreve a história da anterior governação fazendo, com indecência e
veneno, uma ficção do que ia sendo uma tragédia real? Que adultera, manipula e
falseia dados, números, factos, informação, de modo a não deixar pedra sobre
pedra da história e da herança da coligação?
Assim sendo, ocupa-se ele
dessa história. E sem nunca abrir mão, nem baixar a guarda, ressuscita a
herança. E se é a “isso” que o governo, o poder, a esquerda e os mal pensantes
chamam “falar sempre do passado”, sim, o líder do PSD conta-nos como ele foi e
não como dizem “falsamente” que ele foi. Quem, porém não estiver distraído (ou
obcecado com a duração da sua liderança que atrasa o ansioso desejo de um bloco
central) notará que ele igualmente fala, claro está, do presente. Do presente
da geringonça. Das suas manhas e artifícios, da sua agenda para o país, dos seu
ilusórios feitos. Do permanente “fingimento” que tudo está bem, a andar bem, na
“melhor direção”.
Por tudo isto, Passos nem se
acha – e ainda menos se olha – como estando acrisolado num casulo. Vai a meio
da viagem. Quem o achar “isto” ou “aquilo”, que o combata no PSD e lhe ganhe. Subentendido:
e que vença depois as eleições.
Imperturbável, fleumático,
solitário, com alguma cansada ironia, resiliente e resistente (não é a mesma
coisa) está bem armado para a vida, comporte ela vitórias ou derrotas. Já
provou as duas. É o suficiente? Já o foi, talvez volte (ou não volte?) a sê-lo,
a política não se compadece com certezas antecipadas.
Em resumo: uma agenda
oposicionista de altíssimo risco, um caminho armadilhado pelo próprio Passos
Coelho, olhados ambos, – agenda e caminho – com pasmo. Até no ressentimento ou
no desprezo altivo com que é interpelado no parlamento se escondem muitos
gramas de pasmo: a escolha da rota confunde companheiros, adversários, amigos e
até inimigos. Um caso que certamente não nos desinteressará até ao seu
desfecho.
Agora percorre o país
(autárquicas oblige), não se sabe se com mais paciência que gosto,
mas isso nunca se saberá, é demasiado reservado para isso e o hábito do dever
pesaria sempre mais que uma súbita preguiça ou um inesperado entorpecimento.
O que se sabe é que não
mudará. Não lhe dará jeito fazê-lo, valha isso o que valer na sua vida política
e na do PSD. Mas que tudo isto, que é quase um mistério, encerra um tremendo
“enjeu”, é verdade. A menos que a ironia cansada seja pela primeiríssima vez a
exposição de um estado de alma, que não seria senão um sinal.
E nesse caso… Nesse caso a
história teria de ser contada de outra maneira.
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