Rui Ramos
Houve quem tivesse notado que nenhum outro
presidente da república fora tão duro desde o general Eanes. Mas o ponto é que
também nunca um chefe de governo foi tão frouxo na sua resposta ao presidente.
Tal era a vontade da
oligarquia em que isto continuasse a parecer que corria bem, que ainda havia
quem achasse que, dois anos depois, António Costa continuava em “estado de
graça”. Que aconteceu esta semana? Porque é que, perante o mais tremendo
fracasso do Estado de que há memória, com 107 mortos e concelhos inteiros
arrasados, foi preciso o discurso do presidente da república e finalmente a
iniciativa da própria ministra para acontecer o que tinha de acontecer? A
ministra notou que estavam “esgotadas todas as condições políticas e pessoais”.
Porque é que o primeiro ministro não achou o mesmo?
Comentou-se, a propósito, que
António Costa não sabe “gerir as más notícias”. Desculpem, mas o problema não
foi esse. Foi, em primeiro lugar, tudo o que ele não fez em quatro meses,
depois de Pedrógão Grande. Porque foram precisos mais 43 mortos? Porque optou
por mais uma “reforma florestal”, à D. Dinis, em vez de se ocupar, por exemplo,
das faixas de segurança à volta de estradas e povoações, como manda a lei?
Porque não fez funcionar a Proteção Civil?
Manuel Alegre falou de
“amiguismo”, outros falaram do seu paroquialismo lisboeta. Mas a dificuldade de
António Costa é mais profunda. É de quem, como explicou aos jornalistas na
noite de domingo, não acredita que seja possível fazer melhor, e que por isso
foi capaz de dizer, enquanto os mortos eram contados, que haveria mais
tragédias para o ano e que a demissão da ministra não faria a mínima diferença.
De súbito, eis um primeiro-ministro que os mais distraídos ou perversos sempre
tinham descrito como um optimista bonacheirão, revelado como o seu contrário,
um céptico frio e brusco.
Ninguém se deveria ter
espantado. António Costa e a sua geração no PS chegaram ao poder em 1995 com
uma ideia: a chamada “Terceira Via”. Vinte e dois anos depois, já não há
convicções nem entusiasmos. O abandono de António Guterres em 2001 e a
bancarrota do socratismo em 2011 consumiram as ilusões. A acusação a Sócrates
foi a última desmoralização: quem, depois disso, pode ainda levar a sério o que
quer que seja? Em 2015, Costa sofreu a indignidade de perder uma eleição que
todos davam como ganha. Para salvar a sua carreira, teve de se aliar com
partidos que negam tudo o que o PS representou, a começar pela integração
europeia. É um primeiro-ministro fraco, dependente de negociações constantes
com este e aquele, não só em Lisboa, mas, devido à vulnerabilidade financeira
do país, também em Bruxelas. A fraqueza explica a “capitulação” perante o
discurso presidencial de terça feira. Houve quem tivesse notado que nenhum
outro presidente fora tão duro desde o general Eanes. Mas esse não é o ponto. O
ponto é que também nunca um chefe de governo foi tão frouxo na sua resposta ao
presidente.
É verdade: a sorte, nos
últimos vinte anos, deixou sempre António Costa e os seus correligionários
governar quando havia algum dinheiro para gastar, como agora. Mas o importante
não é a sorte, mas o que fazem eles atualmente com essa sorte. Outrora ainda
prometiam “mudança” e “reformas”. Agora, reduzem o Orçamento de Estado a um
orçamento de campanha eleitoral. Em que acreditam? Aparentemente, que a melhor
maneira de controlar este país envelhecido e endividado é concentrar os
recursos no Estado e favorecer com eles o funcionalismo público e os
pensionistas mais bem pagos. Tudo o mais pode ser sacrificado, até essa velha
vaca sagrada do SNS, como notou o Tribunal de Contas.
É isto que lhes ficou ao fim
de mais de quinze anos de governo em duas décadas: uma técnica cínica de
exercício do poder. O resto já não lhes importa, e por vezes mal conseguem
disfarçar a sua impaciência, como aconteceu ao primeiro-ministro na noite de domingo.
“Não me faça rir”, disse à jornalista. Há muito que todas as piedades do regime
não têm outro efeito senão esse, fazê-los rir. Este é de facto o primeiro
governo da desistência nacional.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 20-10-2017
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 20-10-2017
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