Helena Garrido
António Costa é responsável por políticas
que queremos e por isso a tragédia dos incêndios é também um peso para a nossa
consciência. Fomos nós que escolhemos abandonar aquelas pessoas.
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Foto: Octavio Passos/Lusa |
A realidade é violenta,
dolorosa, indisfarçável. Mais de cem portugueses morreram porque não
conseguimos ser exigentes com os nossos governantes. Deixamo-nos levar pela
propaganda e pelo eleitoralismo, pelo mais dinheiro no bolso sem nos
perguntarmos como está isso a ser possível. Aquelas pessoas que vimos entregues
a si próprias porque, como já muitos disseram, o Estado falhou na sua função
mais básica deviam ser uma vergonha para todos nós.
Sim, há uns que têm mais
responsabilidade do que outros. Sem dúvida que o Governo de António Costa é o
primeiro e mais importante responsável. O primeiro-ministro fez-nos pagar este
preço pela sua estratégia política de conquista de eleitorado e mais de cem
pessoas pagaram-no com a vida. E o Presidente que há muito percebeu e só agora
falou.
A tragédia podia ter sido na
saúde ou nos transportes públicos – o que se passou recentemente com a Soflusa na ligação entre o Barreiro e
Lisboa é um pequeno exemplo. Aconteceu com um Verão demasiado quente em cima de
décadas de desordenamento e com uma Proteção Civil liderada na lógica dos
empregos para os amigos e toda uma estrutura de combate aos incêndios sem
dinheiro.
Hoje só não estamos a noticiar
a falta de dinheiro dos serviços públicos porque os funcionários não falam por
medo de perder o emprego e o PCP e o Bloco de Esquerda, que denunciavam estas
situações, apoiam o Governo e, implicitamente, esta estratégia de distribuir
dinheiro para ganhar votos – mesmo não o conseguindo, como se viu nas
autárquicas.
O que se está a passar na
nossa vida enquanto comunidade é assustadoramente preocupante. A grande massa
de eleitorado urbano satisfaz-se com um bodo aos pobres, na dimensão suficiente
para ir fazendo uns fins-de-semana prolongados e uns jantares fora. Dentro
desse grupo merecem um tratamento especial os funcionários públicos, pela sua
dimensão, e os pensionistas, com especial relevo para os que ganham mais e têm
acesso ao espaço público. A estratégia é tão simples e fria quanto a de uma
empresa que define um objetivo de mercado. Tudo o resto, como não faz mexer o
ponteiro das vitórias eleitorais, não existe.
Os últimos orçamentos do
Estado foram pensados nessa lógica. Se o país fosse uma empresa podia dizer-se
que na era da troika fomos geridos pelo administrador financeiro e nestes
últimos dois anos pelos responsáveis da área comercial e do marketing. Tudo o
que não se vê ou que esteja protegido dos olhares externos pode ficar com menos
dinheiro. E assim se faz dinheiro para acabar com os cortes dos salários da
função pública, rapidamente ao mesmo tempo que se reduz o défice público.
São escolhas políticas
apresentadas como uma opção pelas pessoas, pela coesão social, pelo combate à
pobreza e pela promoção da igualdade. Quem o diz assume-se até como tendo o
monopólio destes objetivos, como se todos os outros fossem contra valores que
são (ou deviam ser) os alicerces da nossa sociedade.
O problema vem ao de cima
quando tentamos ver os atos dessas palavras. É enorme a distância entre aquilo
que se diz que se faz e aquilo que realmente é concretizado. A coesão social, o
combate à pobreza e a promoção da igualdade limitam-se ao segmento do mercado
eleitoral urbano que faz mexer o ponteiro dos votos. Os outros ficam ao
abandono, como dolorosamente vimos na morte e na vida de quem esteve dentro dos
incêndios do fim-de-semana.
A situação agrava-se quando as
lideranças governamentais ou mesmo parlamentares são um círculo fechado onde
quase todos andaram no “liceu” com quase todos, conheceram os pais ou até os
avós, conviveram ao longo de anos por laços de amizade ou familiares. O seu
mundo é aquele minúsculo universo de amigos e conhecidos que confundem com o
país. As suas prioridades de governo da comunidade são hierarquizadas de acordo
com o que conseguem ver nesse seu mundo, infantilizando os seus concidadãos.
A falta de sentido de Estado a
que assistimos em plena tragédia é ainda reveladora desse círculo fechado
gerador de um misto de arrogância e desespero. Não cabe na cabeça de ninguém
considerar que António Costa, a ex-ministra e o seu secretário de Estado não
estavam também a sofrer e queriam dizer o que disseram naquele tempo em que
havia pessoas sozinhas a combaterem as chamas, algumas a morrerem e outras a
fugirem até em contramão pelas autoestradas. Quando Costa diz, no meio da
tragédia, “não me faça rir a esta hora”, a sua ex-ministra Constança Urbano de
Sousa afirma que seria mais fácil demitir-se para ter as férias que não teve ou
o secretário de Estado Jorge Gomes declara que “têm de ser as próprias
comunidades a ser proativas” esqueceram-se que estavam a falar para milhões de
pessoas. Não tiveram capacidade de sentir o sofrimento de quem estava a viver a
tragédia e a ansiedade e dor de quem assistia a ela. Foram apanhados na
ratoeira do seu mundo de declarações.
Nos duros anos da troika
cortou-se despesa pública por todo o lado, sem dúvida. Vivíamos numa situação
de emergência financeira em que a alternativa a esses cortes, no quadro em que
estávamos, seria o colapso do Estado, ou seja, de toda a sociedade. Com a
vertente financeira estabilizada e com o crescimento da economia, o Governo
ficou com as mãos livres para fazer escolhas.
Este Governo escolheu gastar a
margem financeira que o Estado ganhou na recuperação de rendimentos dos
funcionários públicos, dos pensionistas e dos contribuintes. Esqueceu-se que
também há pessoas atrás das despesas de funcionamento e de investimento do
Estado. Os portugueses em geral que precisam de segurança, de justiça, de
saúde, de educação, de transportes públicos.
Com essa estratégia satisfez
um vasto segmento da população, o Governo ganhou popularidade e intenções de
voto espelhadas nas eleições autárquicas. Simplificou-nos o mundo dividindo-o
entre “os maus” do anterior Governo que queria a infelicidade de todos e os
“bons”, que agora governam, que nos querem fazer felizes. Infantilizou-nos e
nós aceitámos ser infantilizados.
Todos nós como sociedade
estamos agora a pagar o preço dessa infantilização e da hierarquia de valores
que garante sucesso eleitoral a políticas que se concentram em conquistar
votos. Não é apenas António Costa que tem de pedir desculpa. Somos todos nós.
Porque António Costa só fez esta política porque do alto do seu mundo sabe como
nós podemos ser, como não queremos saber como foi possível de repente aparecer
tanto dinheiro.
Cada vítima dos incêndios,
cada pessoa que perdeu a sua casa e o seu modo de vida são também um peso que
tem de estar na nossa consciência. Por não queremos saber, por não sermos
exigentes, por nos deixarmos ir com papas e bolos. O Presidente da República já
o tinha percebido há muito tempo, como se foi ouvindo numa ou outra palavra. É
pena que só agora tenha falado para que todos percebam.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
19-10-2017
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