quinta-feira, 23 de junho de 2011

Massamá, um novo centro político e urbano

Jorge Figueira
Foto: JP
Do ponto de vista urbano, a periferia corresponde a um certo estado selvagem, primitivo. O espaço público não está aculturado, sedimentado pelo tempo. Há mudanças bruscas de registo; os edifícios ora são densos, ora se rarefazem violentamente. É como um rap: um deserto melódico com muitas palavras em cima. Sobre a periferia é difícil falar bem, sem snobismo invertido. Há muito para troçar; e, fundamentalmente, o desejo de partir. Mas não no caso do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, que já afirmou querer continuar a residir em Massamá, “cidade-dormitório” no concelho de Sintra. De facto, na eleição de Passos Coelho, vir de fora, ter essa independência, parece ter tido um valor simbólico. O novo primeiro-ministro é essencialmente alguém que fez um percurso pela província e pela periferia – Vila Real, Silva Porto, Massamá -, mesmo se é acusado de ser um homem do “aparelho” do PSD. Mesmo que o tenham tentado colar ao “aparelho” – ao centro histórico -, a imagem dominante é que Passos Coelho vem da periferia, caminha na periferia.

A passagem do Heron-Castilho, Lisboa, onde reside o ex-primeiro-ministro José Sócrates, para Massamá é uma mudança ao nível da teoria da arquitectura.

De facto, a conversa centra-se hoje na reabilitação dos centros históricos e até, indo até aos confins, no “regresso ao campo”. O que é compreensível e bem. Ao permanecer irredutível na periferia, Passos Coelho está em contraciclo. Mas é democrático. Se tomarmos o lugar onde habita como metáfora para um percurso político, o descompromisso selvático da periferia, embora doloroso, emerge como mais performativo que as falinhas mansas do centro histórico, onde a conversa já está toda feita e arrumada.

A periferia é um vasto espelho das limitações da nossa democracia, das suas brutais imperfeições: o voluntarismo; a ganância; a pressa; o desenrascanço sem graça. Representa as dificuldades do crescimento português, de fazermos sentido urbanamente. Significa aquilo que as cidades não souberam acolher. Na periferia, o efetivo aumento de qualidade de vida é puramente individual, não tem tradução no plano colectivo. Casa casa terá o seu conforto e o seu televisor, mas a entropia e a conquista brutal do território é desconfortável e não passa na televisão. Maus acabamentos, dizem os arquitectos; más infra-estruturas, dizem os engenheiros; violência, dizem os sociólogos… Na periferia faz tudo falta, menos as pessoas. No centro histórico existe quase tudo, menos as pessoas.

Sobre o centro histórico conhecemos o discurso e esperamos ansiosamente pela reabilitação; pelo peeling da pedra; pelas novas oportunidades. Sobre a periferia ainda nos falta o discurso, quanto mais a acção. É muito mais difícil pensar o que pode acontecer. É um lugar à procura de redenção.

É por isso reconfortante ter um primeiro-ministro que vive lá. Como diz a Wikipédia no capítulo “Habitantes Ilustres” da respectiva página: “Vive em Massamá o primeiro-ministro eleito de Portugal.”

Podemos entretanto imaginar um projecto urbano entre Massamá – S. Bento, do subúrbio para o palácio: o desenho de um trajecto em limousine de um improvável rapper com voz de barítono que alcançou o estrelato mas não renega as origens.

Massamá, o próprio nome, tem algo de ancestral, de fundador, e é ao mesmo tempo mais C’est chic (dos Chic) do que chique e isso é também boa notícia.

Como noticiou o Inimigo Público, e ainda não foi desmentido, depois de mudar a capital de Portugal para Massamá, a “Procuradoria-Geral da República será instalada numa casa de frangos e a residência oficial da Presidência da República será transferida para um contentor provisório no parque de estacionamento do centro comercial”. Imaginam as possibilidades?

Transformar Massamá, como S. Bento, num novo centro político e urbano – aqui está um belo exercício para as escolas de Arquitectura e para todos nós.
Jorge Figueira, crítico de arquitectura, “Cidades”, jornal “Público”, 19-06-2011
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