Maria João Avillez
1. Não é que não esteja habituada à camada de solidão por cima de
mim, como a do ozono, ou que estranhe alguma pancada. Quem não tem inimigos,
não tem amigos. Mas desta vez não foi bem isso. Foi uma solitária estranheza
face às suposições e vaticínios sobre que desfecho assinará o Presidente da
República para pôr cobro a “isto” … (fica assim, em branco, cada leitor
escolherá, de entre o imenso leque disponível, qual o substantivo que mais lhe
aprouver para definir as semanas ocorridas desde o dia 4 de Outubro. Eu, já não
consigo).
À hora a que escrevo (domingo)
não é pública nem oficial nenhuma decisão presidencial. O Palácio permanece
mudo. Não interessa lembrar que Soares demorou 25 dias a “decidir-se” ou que
Sampaio ouviu também um interminável cortejo de gente da alta. Não vale a pena
recordar nem esse nem outros gestos presidenciais passados porque, hoje, só uma
prioridade conta: insultar o Presidente da República. Torná-lo alvo de rancores
e objecto de insultos, enraivecidos uns e outros. Tão nervosos andam os
insultantes que se suspeita da pouca confiança que as esquerdas têm afinal em
si próprias e na sustentabilidade, exequibilidade e estabilidade do seu
“acordo” com aspas.
Fosse como fosse, espantei-me,
repito, com as perguntas mil vezes ansiosamente repetidas, à esquerda e
à direita, sobre o fim deste inédito lance político; surpreenderam-me as
exibições non stop nos vários palcos políticos de protagonistas e figurantes,
como tem havido poucas nas últimas décadas. Surpreendi-me ainda que o
nervosismo à flor da pele socialista tivesse produzido uma apreciável variedade
de baixos insultos e um tão mau uso das boas maneiras, mas é bem sabido que
cada um se serve do que habitualmente pratica.
Mais relevante porém do que
ter ou não ter bons modos é que subitamente, o preço do desacordo político
passou de um dia para o outro a ser cobrado em insultos em vez de argumentos.
Outra estreia absoluta, numa temporada onde têm sido fartas. E isto sim, aflige
e perturba: não é toda a gente que está municiada para combate tão desigual.
Entre outras coisas, é preciso saber manipular mentes e ter destreza no uso de
alguns maus sentimentos.
Cavaco toma o seu tempo,
prefere não alterar calendários externos e rotinas internas? Pois bem,
atira-se-lhe com impropérios pesados. O Presidente não tem o direito de
escolher o seu “timing” nem de ouvir quem julga conveniente? Não, porque a
esquerda e a extrema-esquerda não suportam serem postas “em espera” por um outsider sem
pergaminhos. Cavaco exibe uma postura serena e uma passada tranquila? É um
gangster e pior, um gangster sem pressa. Belém não trata do país como se ele
fosse Paris? Disparam-se cada vez mais alto, acusações de teor cada vez mais
baixo.
Enfim, voltando ao espanto, o
caso é que quer nos colegas, nos amigos, nos adversários, nos inimigos e tutti
quanti, me fartei de tropeçar em gente que, à hora a que escrevo,
ainda se interroga: “e Cavaco, vai fazer o quê?”
Pois bem, repito o que aqui
tenho alinhavado: que há de o Presidente vir a fazer senão o que fará amanhã ou
depois? Igual si próprio, inalterável e previsível, fará simplesmente o que
deve. Muita gente séria, boa, informada, confundindo o que supõe serem os
íntimos desgostos do cidadão Cavaco Silva com os deveres presidenciais face
à Constituição, projectou cenários e apontou soluções governamentais
outras, como se as houvesse.
Ao longo de semanas, por
exemplo, não hesitou tal gente em colocar um governo de gestão num dos pratos
da balança, e no outro prato, um governo da esquerda e da extrema-esquerda. Mas
onde estavam os protagonistas da “gestão” e quem lhes abriria a porta de um
poder desmunido de visto eleitoral, se a coligação que o ganhara nas últimas
eleições, fora deitada borda fora? E onde estava o motor da vontade
presidencial para pôr a funcionar tal governo? E, last but not least,
que ganhava o país com isso? Não percebo.
Mesmo sabendo-se como o acordo
entre as esquerdas é esburacado e postiço, sucede que, sem surpresa – minha,
pelo menos -, os desacordados estarão, em menos de um fósforo, sentados em S.
Bento.
Um alívio que tardava, de
resto: poderá começar outra coisa. Mesmo que acabe noutra República.
2. Também me
espantei (desculpem, eu sei, é espanto a mais) com o caso “Marcelo e os seus
apoios”. Tanto barulho. Uma boa fatia da direita não perdoou a glacial
indiferença do candidato presidencial para com a sua desnorteada orfandade.
Sucede que Marcelo, que nunca na vida se comprometeu com nada – a não ser com
Deus mas isso é outra (contraditória) história -, não era agora, na hora mais
politicamente “H” que ele viveu até hoje, que o iria fazer. Nem o seu lado
“ligth” o ajudaria nessa boa acção.
Seguro de que tem já no bolso
os mesmos votos obtidos pela coligação em Outubro, conta passar um Natal em
paz. Com o centro-esquerda, claro, que namora com habilidade e método e tanto
faz que também sem grande pudor (há quem lhe chame talento). Depois, mais
perto do final da campanha eleitoral, aí uns dias antes, lembrar-se-á da gente
de Passos Coelho e dar-lhe-á a esmola de um discurso, um olhar, uma atenção.
Com sorte até talvez lhe dedique um comício.
Um muito arguto político
social-democrata dizia há dias “mas ele nunca foi dos nossos”, perguntando
furioso se “alguma vez Marcelo estivera convictamente com Sá Carneiro? ou com
Francisco Balsemão? ou com Cavaco? ou com Passos?”
Não esteve. Esteve “com o
PSD”, conseguindo sempre a proeza de compatibilizar o “o muito amor pelo seu
partido” com o fastio relutante que sucessivamente lhe inspiravam tais
personagens. Lembro-me bem de tudo isto, do que vi e ouvi, foram muitos anos.
Seja como for, e custando a
engolir ou não, não há outro e daí o tal (meu) espanto: inventar um
Presidente da República em cima da hora? Desunindo e cortando ao meio um
eleitorado em maré baixa?
De modo que Passos Coelho
(o primeiro a saber desde há muito que não há outro) tenha feito bem em
travar as suicidárias veleidades de uma direita pouco dotada a separar águas e
objectivos. E Portas idem, ao acelerar publicamente a sua (recuperada)
convicção marcelista. Tudo isto para dizer que sendo as coisas o que são – não
as tivessem deixado chegar a este miserável estado de orfandade presidencial, –
não vale a pena ter estados de alma com Marcelo Rebelo de Sousa. Lembrem-se de
Cunhal com Soares (“tapem a foto e ponham a cruz no nome”). Soares e Cunhal que
sabiam o que era a política e como a fazer.
Aqui chegados, vamos ao
“ponto” desta história. Que não é, julgo eu, nem a indiferença de Marcelo pelas
feridas da sua área política, nem o seu desamor por Passos Coelho (e vice
versa), nem a sua evidente cumplicidade com António Costa. O ponto é o próprio
Marcelo. E a sua manifesta dificuldade em perceber que a transformação da
popularidade em votos pode não ser automática e que o que se lhe exige é que
saiba passar do comunicador bem-amado para candidato vencedor à primeira
volta. Sem perder a empatia do primeiro, nem pôr em risco a pele do segundo.
Missão impossível? Não sei. Mas sei que o seu amadorismo algo infantil, o
excesso de confiança, a falta de hábito do trabalho em equipa – de que
necessita, em vez de fazer tudo sozinho, como quase sempre até aqui, pondo
e dispondo – não ajudam. Sobretudo porque o seu lado “leve”, vetando-lhe
qualquer espécie de compromisso, pode atrapalhar-lhe a caminhada.
Talvez só se compreenda bem o
que pretendo dizer quando as sondagens começarem a baixar. Isto é quando os
deslumbrados alunos do “Professor” perceberem que agora quem ali está já não é o
– divertido – entertainer-campeão-de-audiências-televisivas-dominicais,
mas um cavalheiro sisudo que não parece ter muito a dizer-lhes nas suas
(intencionalmente escassas) “aparições” públicas. Convinha arrepiar este
caminho e se possível até ao comprometimento. Talvez Marcelo ainda não
tenha percebido que se há factor que interpele um eleitorado – de direita
ou de esquerda – é o “compromisso”. E a confiança que ele grava no intimo
de cada eleitor.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 23-11-2015
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-