José Manuel Fernandes
O Bloco pode dizer tudo o que entende que
ninguém se incomoda. Catarina Martins pode exceder-se ou disparatar que ninguém
escrutina. A esquerda-chique tem de facto um encanto bem especial - e venenoso
O Bloco de Esquerda goza de
uma surpreendente condescendência em Portugal. Catarina Martins pode dizer as
maiores barbaridades, o partido pode apresentar os projectos de lei mais
disparatados, Marisa Matias pode elevar o tom de voz, que tudo passa com um
simples encolher de ombros. Na verdade nenhum partido é tão pouco escrutinado
em Portugal como o Bloco. E, ao mesmo tempo, nenhum outro é tão opaco na sua
forma de funcionamento e nas suas regras internas – nem o PCP.
Tomemos um exemplo recente.
Este domingo, durante um encontro sugestivamente intitulado “Inconformação
2016”, Catarina Martins proclamou que o trabalho voluntário “é uma treta”.
Mais: acrescentou que “se é trabalho, tem que ter contrato”, pelo que só pode
existir “quando houver pleno emprego”.
Tenho dificuldade em imaginar
uma declaração que revele um maior desconhecimento da realidade e, sobretudo,
de compreensão do que é o voluntariado. Catarina Martins nunca deve ter
contactado com as inúmeras organizações que, na sociedade civil, prestam
serviços à comunidade com base no trabalho voluntário. Instituições de
solidariedade social. Bombeiros. Serviços comunitários. Clubes, associações
culturais e recreativas, grupos amadores. Muitos dos que se voluntariam para
ajudar em múltiplas frentes da nossa vida colectiva fazem-no nas horas livres
depois de saírem dos seus empregos. Mas muitos outros fazem-no para dar sentido
à sua vida quando já se reformaram ou quando estão desempregados. Leram bem:
quando estão desempregados. E ainda bem que assim é.
O trabalho voluntário não
substitui um emprego, mas conheço casos, muitos casos, em que o trabalho
voluntário ajudou quem passou pela dura situação de desemprego a sentir-se
“entre empregos” em vez de se sentir atirado para as margens da sociedade. A
sentir-se vivos e úteis e não sozinhos e ociosos.
Mais: se os milhares de
associações que, em Portugal, prestam serviços inestimáveis tivessem de
transformar em contratos as horas de dedicação voluntária de que beneficiam, a
maior parte deixaria de existir. Perderiam as populações que ajudam e apoiam,
perderiam todos os que nelas encontram uma forma de se realizar pessoal e
humanamente.
Dizer que todo este mundo do
trabalho voluntário “é uma treta” começa por ser insultuoso para com toda uma
rede de instituições que fez, faz e fará muito mais pelo país, e pelos seus
pobres, pelos seus doentes, pelos que nele sofrem, do que alguma vez fez ou
fará o Bloco de Esquerda. Mas é mais do que isso, pelo que revela sobre a forma
de pensar dos bloquistas, e de Catarina Martins em particular: naquelas cabeças
só cabem assalariados e empregadores, e o ideal seria mesmo que só houvesse um
empregador, o Estado. Aquelas cabeças, apesar de todo o verniz pós-moderno com
que se disfarçam, continuam a carburar no registo do “socialismo real”, o
daqueles países onde havia de facto “pleno emprego” – e também pobreza
generalizada (excepto para a oligarquia dirigente). E garanto-vos que não
exagero, pois só alguém com a cabeça cheia de teias de aranha pode referir-se
ao trabalho voluntário como sendo “uma treta”.
Poderia encontrar muito mais
exemplos de desconchavos semelhantes de Catarina Martins (sendo que um rol
deles pode ser encontrado num texto do esquerda.net chamado “6 razões para
acabar de vez com os exames do básico” onde a líder bloquista defende, por
exemplo, que preferia “ser operada por um cirurgião que em vez de testado na
escola tenha sido feliz na escola”), mas o importante é tentar perceber o
porquê da condescendência para com o Bloco.
Há muitas razões, e não
pretendo esgotá-las neste artigo, antes aproveitar outros exemplos recentes
para deixar algumas pistas.
Começo por isso por outro
dislate recente, a ideia peregrina de que se deve mudar o nome ao Cartão do
Cidadão pois essa designação “não respeita a identidade de género de mais de
metade da população portuguesa”. Custa a crer que, no momento que o país
atravessa, os deputados do Bloco se preocupassem com bizantinices deste género
– ou melhor, que nos façam perder tempo com disparates que só podem sair da
iniciativa de gente preocupada em dar nas vistas, mesmo que à custa de
imbecilidades. Não vou perder tempo a ilustrar o disparate que é querer que
todas as palavras respeitem a dita “identidade de género” (mas podem sempre
divertir-se um pouco ouvindo Ricardo Araújo Pereira no último Governo Sombra, a
partir dos 40m30s), antes sublinhar que mesmo arriscando-se a cair no ridículo,
como desta vez sucedeu, os bloquistas necessitam de temas assim para se
identificarem com o ambiente politicamente correcto em que vivem as nossas
elites, sempre temerosas de serem condenadas por saírem da nova norma.
Nenhum operário (ou operária)
está preocupado com estes tipo de temas – mas a verdade é que o Bloco também
não os representa. O Bloco é um partido urbano de bem-pensantes, talvez o
partido português com menos base popular. O Bloco é mesmo o exemplo acabado do
destino das esquerdas contemporâneas, que há muito deixaram de representar os
desvalidos, por vezes deixando-os mesmo nos braços de partidos-gémeos mas de extrema-direita,
e passaram a falar pelas classes médias rentistas, isto é, pelos que
economicamente dependem do Estado e culturalmente vivem no pânico de não serem
considerados “modernos” ou mesmo “progressistas”.
O Bloco padece também de todos
os vícios típicos dos partidos formatados por intelectuais com pouca ou nenhuma
ligação à vida real. Alimenta-se por isso de ideias feitas, de “verdades” que
grita no Parlamento (já repararam como quase ninguém condena a agressividade,
por vezes a roçar a grosseria, de muitas das intervenções de Catarina Martins?)
e de slogans fáceis que ninguém trata de confrontar com a realidade. É um
partido que se alimenta de ideologia que apresenta como correspondendo ao senso
comum, beneficiando, e muito, de em Portugal existir uma velha cultura
estatista e iliberal, enraizada tanto à esquerda como à direita.
Um bom exemplo deste viver de
ideologia é um post de Mariana Mortágua no Facebook onde esta tenta desmentir a
existência de uma relação entre subida do salário mínimo e desemprego de longa
duração, uma relação referida no mais recente relatório da Comissão Europeia
sobre Portugal. Jorge Costa já mostrou de forma eloquente que o raciocínio da
deputada do BE está construído sobre falácias, pelo que o interessante neste
caso é notar a reverência com que a nossa intelligentsia escuta Mariana
Mortágua. Não se discutindo a sua inteligência, tal como não se discute a
inteligência de Francisco Louçã (a esquerda é que gosta de desqualificar os que
pensam de forma diferente como sendo incultos ou ignaros), o que importa notar
é que, em política, a inteligência tende a potenciar o perigo das ideias
erradas, não a evitá-las. Salazar e Cunhal são dois bons exemplos de como a
inteligência ao serviço de ideais perigosos pode causar, como causou, imensos
danos ao país.
O caso deste pequeno texto de
Mariana Mortágua, para mais acompanhado por um gráfico, é exemplar por ser
sintomático de um ambiente intelectual caracterizado pela quase total ausência
de escrutínio das proposições dos bloquistas. Senão repare-se: a UE fala no seu
documento do aumento rápido do salário mínimo, Mariana Mortágua responde
falando de salários mínimos elevados; a UE fala do desemprego de trabalhadores
com poucas qualificações, que tende a ser mais prolongado, e Mariana responde
usando a percentagem de desempregados de longo prazo. Este forçar da realidade
para encaixar nas ideias da bloquista deveria acender uma luz vermelha em quem
tem o dever de escrutinar as suas posições, mas isso não sucede, pois a maioria
ou já está contaminada, ou está antecipadamente rendida ao brilho da sua
inteligência. O que, repito, é perigoso, pois cega-nos.
Aqui há uns tempos o PCP, pela
voz de Jerónimo de Sousa, explicou um mau resultado eleitoral do seu partido
pela falta de carinhas larocas. Estava enganado. O problema do PCP face ao
Bloco é que ainda não aprendeu a enroupar o velho marxismo no pós-modernismo
das actuais modas universitárias. O problema do PCP é que também ainda não
compreendeu que as suas raízes operárias já pouco contam, o que importa é
cativar os intelectuais que, mesmo não dispensando nenhum dos seus confortos
burgueses, aliviam o peso das suas consciências aplaudindo as tiradas de
Catarina Martins – as contra os banqueiros, porque é o que está a dar; as contra
o “trabalho voluntário”, porque eles nunca sujaram as mãos a ajudar pobres e
nem sabem o que isso é; e por fim as a favor da mais esdrúxula das causas, com
medo de parecerem antiquados. Sucumbem alegremente a um populismo que,
infelizmente, poucos à esquerda — uma das notáveis excepções é Francisco Assis
— se atrevem a denunciar.
É muito confortável abdicar de
pensar e ir na onda. A Catarina, a Marina e a Mariana agradecem, pelo que um
dia destes acordamos nas mãos do Bloco sem saber como nem porquê. Já esteve
mais longe de acontecer.
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