Alberto Gonçalves
As subtilezas da ciência
política não são para qualquer um. Em Outubro passado, não sei se se lembram,
houve por cá um arranjinho no parlamento para remover um Governo eleito dias
antes, liderado pelo partido mais votado, e colocar em seu lugar uma
irrelevância desprezada nas urnas. Para os leigos, o exercício não passou de
uma trapaça rasteira, ou no mínimo de uma artimanha pouco ética.
Felizmente, os peritos
explicaram: muito pelo contrário. Na verdade, aquilo era a vontade do povo em
acção, a Constituição a plenos pulmões, o derrube dos últimos muros, um tempo
novo enfim. Ficámos todos descansados. E agora surgiu a questão brasileira e
ficamos todos confundidos outra vez.
Um ignorante esperaria que o
processo destinado a enxotar a dona Dilma, rosto de um poder demasiado corrupto
até para os padrões latinos, fosse recebido em êxtase pelos nossos
especialistas em legitimidade. Não foi. Para o PCP, paradigma na matéria, a
coisa é "um novo e perigoso passo em frente" e uma "ofensiva
golpista" das "forças reaccionárias" e do
"imperialismo" (o PCP aproveitou para se declarar solidário com
"os trabalhadores e o povo brasileiros"). Para um deputado do Bloco
de Esquerda, o "golpe" é "racismo", "fascismo",
"boçalidade machista", "absurdo" e "nojento" (o
deputado em causa aproveitou para se declarar solidário com os seus
"amigos e amigas brasileiras [sic]"). Para uma deputada do PS, o
"golpe de Estado" é "demagogia populista"
(inexplicavelmente, a senhora não se solidarizou com ninguém). Para uma
socialista que não sei ao certo o que faz todo o episódio "é uma
vergonha" e "um atentado à democracia".
No fundo, cá e lá, a regra
parece ser a seguinte: os representantes do eleitorado podem e devem derrubar
os governos de que a esquerda não gosta apenas porque lhes apetece. O recurso à
"fundamentação" (exemplos: "austeridade",
"subserviência a Bruxelas", "neoliberalismo", falta de
"consciência social") é facultativo. Já os parlamentares não podem
nem devem perturbar os governos de que a esquerda gosta, os quais, por seu
lado, estão à vontade para amesquinhar a ralé quando lhes apetecer.
Ao invés do que acreditam os
simples, a corrupção e o saque organizado não são valores absolutos, donde um
governo "reaccionário", ainda que pio como Francisco de Assis, seja
sempre culpado de cedência ao capital, e um governo de esquerda, ainda que
assalte transeuntes à mão armada, seja sempre vítima de conspirações pérfidas.
As mesmas subtilezas aplicam-se à formação cívica: há os deputados selvagens
que invocam a avó Juraci e Iemanjá para depor a dona Dilma e há a dona Dilma,
que não profere uma frase sem trucidar a língua e, não obstante, é a predilecta
da "cultura" (não comento o caso nacional, incluindo um
primeiro-ministro que passeia o ciclo preparatório, ministros que dizem
"tenhemos" e sumidades que tomam o dr. Boaventura por um
intelectual).
Contas feitas, tudo isto
remete para um grave problema das democracias: existem. O mundo seria um lugar
melhor se não existissem, substituídas por simulacros a cargo das forças
progressistas, afinal as únicas que sabem o que lhe convém a si, a mim e aos
idiotas dos brasileiros que não apreciam o roubo, perdão, o progresso.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado,
26-4-2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-