Paulo Tunhas
Dilma Rousseff presidiu durante anos a um
Governo que manteve, e até aumentou, uma corrupção estratosférica. Para não
falar da inacreditável tentativa de levar Lula para o Governo
Na semana passada, almocei em
casa de velhos e muito bons amigos. Em frente a uma bela lampreia, e, depois,
na companhia de uma mousse de chocolate como já não comia há séculos, a
conversa girou em torno de alguns dos costumeiros delírios da política
nacional. João Soares, é claro, e a velha e consistente tradição de violência
da linguagem no PS, de que Jorge Coelho (“Quem se mete com o PS, leva!”) e
Augusto Santos Silva (“Eu gosto é de malhar na direita!”) são bons exemplos.
Embora não se deva confundir tudo: Jorge Coelho e Santos Silva percebiam o que
estavam a dizer.
Também houve grande galhofa
por causa da proposta do Bloco de Esquerda para que se substitua o “Cartão do
Cidadão” pelo “Cartão da Cidadania”. Dantes, havia uma obsessão com o sexo, e
consta até que alguns vitorianos, com medo de que as pernas das mesas
inspirassem sentimentos impróprios em certos indivíduos, as cobriam com púdicas
saias. Os tempos mudaram: foi-se o sexo, chegou a obsessão com o género. O
Bloco limita-se, de resto, a adoptar as modas de pronto-a-vestir intelectual
que os transvios do génio humano põem à sua disposição. A “cidadania” do Bloco
é a saia dos outros.
Ainda mal tinha eu acabado de
fazer a digestão da lampreia, quando chegou a votação do impeachment de
Dilma em Brasília, e, a seguir, as reacções portugueses à coisa. As reacções,
como seria de esperar, foram maioritariamente de condenação e de desprezo:
condenação pelo suposto “golpe” que a votação representava e desprezo pelo
curioso ritual a que os deputados da Câmara se prestaram com visível gosto.
Por acaso, vi em directo,
através de um canal brasileiro, e até às três da manhã, a votação dos deputados
dos vinte e cinco partidos em Brasília, de que o Observador, seja dito de
passagem, fez uma óptima cobertura. Primeiro, a puxar para o assombrado, e,
depois, Deus me perdoe, rindo-me de vez em quando. Praticamente tudo o que me
faça esquecer o próximo resgate que António Costa e Mário Centeno nos andam a
preparar tem o condão de me pôr de boa disposição.
Notei o que muita gente notou.
O modo como quase todos os deputados que votaram “sim”, nas declarações
individuais de voto, agradeciam, sensivelmente por esta ordem, a Deus, aos
estados que representam, às cidades de que são originários ou onde se
estabeleceram, à bancada partidária, à mulher, aos filhos (quase sempre com
nomes – as mulheres não), alguns aos netos. Um até voltou atrás, depois de dois
outros falarem, para dizer que se tinha esquecido de falar do filho – e disse o
nome. Houve também, pelo menos uma vez, cantoria, com chuva de papelinhos, e
votos de feliz aniversário a netas. Não faltaram sequer profecias: “Em nome do
Senhor Jesus, profetizo…”. A honra das famílias foi defendida, tal como os
princípios ensinados às filhas. Sob o olhar do Grande Arquitecto do Universo,
votou-se em nome de mulheres que estavam a morrer e de filhos ou netos que
estavam a nascer. O particularmente aplaudido deputado Tiririca, que votou
“sim”, foi dos mais sóbrios e comedidos. Mas ninguém se enganou no “sim” ou no
“não” – erro: houve um deputado de Minas Gerais que se enganou, parece-me, e
corrigiu -, e, talvez mais surpreendentemente, ninguém se esqueceu do nome dos
filhos, nem do número exacto de votos que tinha recebido para ser eleito.
O “sim” e o “não” repetiam
frases simétricas. Se o “não” falava “em nome dos 54 milhões de votos de
Dilma”, o “sim” respondia “em nome dos 10 milhões de desempregados”. Se o “sim”
dizia “Deus”, “Família”, “Amor”, o “não” dizia “Golpe”, “A luta continua!”,
“Não passarão!”. Lá fora, na rua, o “sim” vestia-se das cores da bandeira, o
“não” de vermelho. No meio de tudo isto, Eduardo Cunha, o presidente da Câmara,
recebia impávido, com a aparência de um sábio estóico, os insultos (“corrupto”,
“gangster”, etc.) que lhe eram directamente dirigidos pelos votantes do “não” e
alguns do “sim”. Nem Fernando Correia, na saudosa “Bancada Central” da TSF,
confrontado com energúmenos que se insultavam uns aos outros e que às vezes se
ameaçavam de valentes murros, conseguia manter uma calma tão soberana, a roçar
a pura e simples indiferença. E isso até ao fim, pelo menos até às três da
manhã, quando o “sim” ganhou (o voto 342), pondo termo a uma irritação cada vez
mais notória da maioria com cada voto “não”, que adiava o prazer da vitória. Um
tipo assim quase que tem direito a ser corrupto.
Sou o primeiro a admitir que é
fácil encontrar em tudo isto razões para várias surpresas e, para quem estiver
virado para aí, um riso mais ou menos nervoso. Convém, no entanto, ver também a
coisa por outro lado. Primeiro, no que diz respeito à questão do “golpe”. Por
muito pouco recomendáveis que sejam os principais líderes da oposição a Dilma,
a questão de se saber se houve ou não “crime de responsabilidade” por parte da
Presidente (ainda alguém diz “Presidenta”?) está muito longe de receber
maioritariamente a resposta negativa que se subentende nos comentários que por
cá se podem ler. Além de que Dilma Rousseff presidiu durante anos a um Governo
que manteve, e até aumentou, uma corrupção estratosférica. E para não falar da
inacreditável tentativa de levar Lula para o Governo, na intenção de o proteger
de condenações judiciais e, quase fatalmente, da prisão. (É ministro ou não é?
É ministro io-iô.)
Em segundo lugar, o desprezo
pelos particulares rituais dos deputados brasileiros. Sem dúvida que é de ficar
agradecido que os nossos deputados não invoquem a mulher, os filhos e o resto
quando votam a favor de uma proposta do Governo (têm a “ética republicana” para
casos de necessidade extrema). Mas a verdade é que, na sua generalidade, também
ninguém os imagina a responsabilizarem-se tão pública e directamente face aos
seus eleitores como se viu os deputados brasileiros (tanto os do “sim” como os
do “não”) individualmente fazerem. Com doses muito grandes de hipocrisia e
facciosismo, admito, mas também com alguma coragem (por razões óbvias, mais
visível até no “não” do que no “sim”). De resto, seria bom atenuar em parte a
suposição de hipocrisia. Quem quer que tenha passado o tempo suficiente no
Brasil, dá-se conta, com surpresa, que certos preconceitos que para lá se
levam, como por exemplo o preconceito da superficialidade da simpatia e da
afectividade extrovertida dos brasileiros, são exactamente preconceitos
errados. A simpatia é mesmo, na esmagadora maioria dos casos, genuína. Nós, na
Europa, embora não nos Estados Unidos, é que nos esquecemos da simpatia.
Experimentem passar seis meses no Rio, e depois cheguem à Europa e digam-me.
Não digo que isto valha sem falhas para justificar o estilo dos deputados
brasileiros. Sugiro apenas que pode haver alguma relação.
De qualquer maneira, se
quisermos tirar indignações dos bolsos, como uma vez disse Vasco Pulido
Valente, ou então rirmo-nos do ridículo alheio, temos por cá muitos e bons
assuntos. O arranjinho (legal) de António Costa para ser primeiro-ministro. O
desastre de um Governo que finge que governa e se limita, na prática, às
célebres “reversões”, conduzindo-nos por muito maus caminhos. O ziguezaguear
permanente, ao sabor das pressões das corporações, das decisões do Governo. A
nossa corrupção nacional, que também conta, como se sabe, com personagens
ilustres. Ou, para voltar ao princípio, o prodigioso “Cartão da Cidadania” de
Catarina Martins. Não apenas para rir. Há ridículos que não são só para rir.
Contêm ameaças sérias, como aqui, ainda ontem, explicou José Manuel Fernandes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-