sexta-feira, 3 de março de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Celulares

Aparecido Raimundo de Souza

UM.
NO ÔNIBUS LOTADO, O CELULAR do passageiro sentado no banco ao lado da porta da saída entoa a 9ª Sinfonia de Beethoven. No terceiro toque o sujeito decide.
- Alô? Alô? Alô...?
Diante da mudez do aparelho o cidadão espia meio desconcertado, para um lado e para outro, a fim de averiguar se alguém olha para ele.

DOIS.
Ninguém parece preocupado, embora todas as atenções estejam discretamente voltadas para sua pessoa. Nova chamada. Desta vez espera uns segundos. Atende, ansioso.
- Alô? Alô? Merda! Alôooa...?
Nada.

TRÊS.
Uma moça trajando um conjunto verde parece um abacate amarrado pelo meio, viaja logo atrás. O telefone dela, com o toque da “Vamos fugir” também resolve se fazer presente. Ao atender, seu rosto se ilumina num sorriso mágico.
- Tô chegando, amor... 

QUATRO.
Há uma pequena pausa.
- Você já está no ponto? Devo pintar aí dentro de uns cinco ou seis minutos...
Novo intervalo. 
- Te amo. Beijos.

CINCO.
Um terceiro celular enche o ambiente com a música da Pantera Cor de Rosa. Uma colegial com o rosto abarrotado de espinhas solta uns gritinhos estridentes, antes de iniciar a conversação.
- Rodriguinho, seu veado. Isso lá é hora de ligar?

A 9ª Sinfonia de Beethoven volta à baila e se mistura com a voz da adolescente.
- Alô? Alô? Alô?

SEIS.
Desta vez a ligação tem êxito. O passageiro sentado no banco ao lado da porta da saída consegue, finalmente, manter o diálogo com seu interlocutor.
- Legal, cara. Parabéns!
Gesticula e fala alto o suficiente para irritar um defunto. Sem um pingo de decência, age como se perto dele não houvesse uma leva de pessoas que merecesse, ao menos, um pingo de respeito e educação.
- Até que enfim. Então você está indo para Portugal? Faça uma boa viagem, meu amigo. O Pedro te manda um abraço. A Luíza um beijo, o Carlos um puxão de orelhas...

Vamos fugir volta a disparar no telefone da moça toda de verde. Ela prontamente abre a bolsa e atende:
- Amor, tenha um pouco de paciência. Que loucura! O quê? Fala mais alto...

SETE.
De repente a coisa toma proporções descomunais. A colegial pisa em ovos de tão indignada e irritada.
- Vá pra merda, Rodriguinho. Não me racha a cara!
O sujeito sentado no banco ao lado da porta parece um lunático.
- Seu avião sai a que horas? As 19? De onde? Eu... o quê?

OITO.
Lado esquerdo do coletivo, um casal assiste a tudo com os olhos arregalados. A certa altura o rapaz comenta, num cochicho:
- É mole ou quer mais?
- As pessoas – observa a moça igualmente aos murmúrios - perderam o senso do ridículo. A sensatez foi pro brejo. Ninguém respeita mais a individualidade...
- Virou febre esse negócio. Todo mundo agora tem celular. Li, ontem, no jornal, que já estão à venda, no mercado, aparelhos celulares de última geração para cachorros.

NOVE.
Risos.
- Fala sério? Qual o quê! Isso é piada!
- Não é não. Agora, além de hospitais, hotéis e restaurantes, os cachorros vão poder contar com mais essa vantagem. 
- Se for verdade o que está me dizendo, minha nossa. É o cúmulo do absurdo. A que ponto chegamos. Olhe só para essa gente. Parece um bando de alucinados. Ninguém se entende.

DEZ.
Um homenzarrão puxa a campainha. Pessoas se levantam. Outras tantas tomam posição para apear.
- Vá se lixar, Ro...
- Olhe, se lá em Portugal não tiver mulher que sirva, volta e leva uma brasileira. As mais bonitas do mundo estão aqui, meu chapa...
- Rodriguinho, eu pensava, até agora, que você fosse do conceito. Me enganei redondamente. Vá pro inferno, tá ligado?

ONZE.
A moça toda de verde dá um salto ao ver o rapaz que a espera, na calçada defronte à porta de acesso de uma loja de departamentos. Passa a mão no telefone e disca um número da memória.
- Ei, amor, olha euzinha aqui. Cheguei. Já me enxergou? Estou te vendo. Me dê adeusinho...

DOZE.
Nessa hora, então...
- A mãe te manda um abraço. Vá com Deus. Chegando em Lisboa, ligue... entendeu? Ligue, ligue, ligue, cacete!...

TREZE.
No mesmo clima...
- Rodriguinho, ô sem noção, o bagulho por aqui tá tenso. Meu namorado não vai gostar. Com certeza levará um lero contigo e depois, com certeza, te comerá na porrada, meu...

A moça de verde, afoita:
- Com licença, meu senhor... com licença...
- Calma senhorita. Vou ficar por aqui também. Deixe ao menos o motorista parar e liberar a traseira.

- De Lisboa? Puta que pariu!
- Ro, Ro, cuidado com a tribo, malandro. Quer saber? Estou injuriada. Vá se foder de verde e amarelo...

- Amor, amor, estou descendo...

QUATORZE.
Sobra o casal acomodado no lado esquerdo, rindo da galera a mais não poder.
- Odeio celular – pondera a jovem depois que todos saem. - Parece que esses trocinhos controlam nossa vida... aliás, dominam, vivem no nosso pé. Jogaram, definitivamente para o ralo, a nossa intimidade. 
- Estou com você – completa o rapaz – O negócio é bom, mas, em certas horas, se torna deselegante e cai no vulgar. Tira a privacidade. Imagine, daqui a algum tempo como lhe falei, ainda há pouco, a gente cruzando na rua, com essas madames, metidas a besta, atendendo o telefone. “É pra você, Fifizinha!”.  

QUINZE.
A jovem se abre num sorriso contagiante e ainda pensa em responder alguma coisa. Nesse momento, entretanto, seu celular estronda Tchaikovsky.
- Desculpe! Meu marido...
Pede licença, baixa a cabeça e, sem tirar o aparelho do ouvido se acomoda num banco lá na frente, ao lado do trocador.

AVISO AOS NAVEGANTES:
PARA LER E PENSAR, SE O FACEBOOK, CÃO QUE FUMA OU OUTRO SITE QUE REPUBLICA MEUS TEXTOS, POR QUALQUER MOTIVO QUE SEJA VIEREM A SER RETIRADOS DO AR, OU OS MEUS ESCRITOS APAGADOS E CENSURADOS PELAS REDES SOCIAIS, O PRESENTE ARTIGO SERÁ PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM MEU PRÓXIMO LIVRO “LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 25-2-2017

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