José Manuel Fernandes
O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
foi à Assembleia e deixou sem argumentos os demagogos do seu partido e da
geringonça. Mas pelo caminho entrámos num novo tempo: o do populismo à
portuguesa
1. Não gosto de
escrever sobre temas onde são mais as dúvidas e as interrogações do que as
certezas. E, no chamado caso das offshores, até meio da tarde desta
quarta-feira só tínhamos uma certeza: o anterior Governo tinha optado por não
publicar no Portal das Finanças as estatísticas relativas às transferências
para um conjunto de offshores. Pelo menos desde maio do ano passado
que esse facto era público. E durante quase uma semana o anterior secretário de
Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, embrulhou-se em declarações
contraditórias, acabando por dar uma explicação para o seu grave erro que não
convenceu ninguém.
De resto, até às intervenções do atual secretário de Estado, Rocha Andrade, tudo o
resto eram dúvidas e suspeições. Vejamos então o que passámos a saber e aquilo que ainda desconhecemos.
Antes dele falar não sabíamos
por que motivo a Autoridade Tributária não registara devidamente cerca de 10 mil
milhões de euros de declarações enviadas pelos bancos. Depois ficámos a saber
que essas declarações são relativas a 14 mil transferências que ficaram
“ocultas” por um mau funcionamento do sistema informático.
Não sabíamos como é que elas
tinham sido “descobertas”, agora ficámos a saber que, entretanto, entrou em
funcionamento um novo sistema informático que apurou valores muito diferentes,
o que fez disparar os alarmes. Não foi a publicação de estatísticas que fez a
diferença (este Governo começou por publicar estatísticas erradas) – foi a
diferença de valores entre os dados tratados pelo anterior e pelo atual sistema
informático que mostrou que algo estava mal.
Não sabíamos se havia algum
euro de impostos por cobrar, isto é, se o tratamento das declarações permitiria
encontrar divergências entre os dados fornecidos pelos bancos e os fornecidos
pelos contribuintes, e ainda não sabemos, mas Rocha Andrade disse não estar “em
condições de afirmar se há um tostão de imposto em falta”, mesmo não sendo
possível garantir que falha informática “não levou a perda fiscal”.
Não sabíamos se tinha havido
neste processo alguma interferência política, mas o mesmo secretário de Estado
disse não ter encontrado nenhum indício que isso tenha ocorrido. Tal como
acrescentou não considerar estranho que os números conhecidos pelo seu
antecessor devessem, só por si, ter chamado a atenção para que alguma coisa
pudesse estar mal.
Por fim não sabíamos porque é
que o Governo estava a demorar tantos meses a perceber o que se passara, mas
agora sabemos que a auditoria da Inspeção-geral de Finanças ao sistema
informático só estará concluída no final deste mês de março.
O que ainda não sabemos é se
existe algo mais do que erro estatístico na estranha relação entre a dimensão
do erro informático em 2014, a dimensão desse erro no caso do Panamá e ter sido
nessa altura que se deu a crise do BES. Pode ser só coincidência, mas com
certas “coincidências” já ficámos bem escaldados.
Tal como ainda não sabemos
porque é que estes esclarecimentos levaram tanto tempo a ser dados de forma
clara, permitindo que no entretanto se instalasse a confusão entre a ausência
de estatísticas publicadas e a possibilidade de uma gigantesca fuga aos
impostos, umas águas turvas onde muitos chafurdaram
2. Vejamos agora algumas
coisas que foram ditas nos últimos dias, algumas delas repetidas pelas mesmas
ou por outras palavras ainda esta quarta-feira na Assembleia da República.
Primeiro, a habitual campeã da
demagogia, Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, numa declaração aos
jornalistas: “O Governo anterior deixou sair pela porta do cavalo 10 mil
milhões de euros, é um número que não é nada pequeno (…) é bem mais do tudo o
que gastamos com o Serviço Nacional de Saúde.”
Depois o próprio
primeiro-ministro, que parece estar empenhado em retirar à esquerda radical o
exclusivo do discurso extremista, falando durante o último debate parlamentar:
“É absolutamente escandaloso que um Governo que não hesitou em acabar com a
penhora da casa de morada de família por qualquer dívida tenha tido a
incapacidade de verificar o que aconteceu com 10 mil milhões de euros que
fugiram do país“.
Eurico Brilhante Dias emulou
esta quarta-feira o líder socialista, mas com tais excessos que até a sua
bancada só o aplaudiu de forma envergonhada, Mariana Mortágua esteve igual a
ela mesma e Miguel Tiago, do PCP, já depois das explicações do secretário de
Estado do governo que o seu partido apoia, ainda insistiu que neste caso houve
“6% do PIB português que escapou do país”.
O que está em causa neste
conjunto de declarações não é apenas “fazer política”, explorar um erro do
anterior Governo e tratar de desviar as atenções de outros temas mais
incómodos. O que aqui está em causa é algo diferente e muito mais grave no seu
significado.
O pano de fundo é fácil de
entender: sempre que se fala em offshores a reação popular é
“puxar da pistola”. Não vou discutir se bem ou mal – até acho que, em muitas
circunstâncias, há todas as razões para puxar mesmo da pistola –, estou apenas
a constatar que se trata de um terreno ideal para toda a demagogia. E para o
mais rasteiro populismo, mas já lá irei.
Comecemos pela demagogia. Não
houve 10 mil milhões de euros “a sair pela porta do cavalo”, como acusou
Catarina: houve 10 mil milhões cuja saída (legal até ver) foi comunicada pelos bancos,
mas não foi devidamente registada pela máquina fiscal. Esses 10 mil milhões
nunca pagariam o SNS, pois se houver algum imposto devido (e pode não haver)
estaremos a falar de alguns milhões de euros, no máximo. Os 10 mil milhões também
não “fugiram” do país, como disse Costa: pelo menos uma boa parte deles
destinou-se a pagar operações comerciais, informou o seu secretário de Estado.
E ninguém podia “verificar o que aconteceu” a dinheiro que, na altura, não
aparecia registado no sistema informático. Sobretudo nada disto tem a ver com o
combate à evasão fiscal e à cobrança de dívidas fiscais, algo que melhorou
muito nos últimos anos a todos os níveis da máquina fiscal. Em contrapartida,
tudo isto tem a ver com uma insinuação soez: a da conivência com a fuga ao
fisco dos “grandes”.
3. Dir-se-á: mas
de demagogia estamos todos nós cansados. De uma forma ou outra todos bebem na
mesma fonte. É verdade. O que torna este tipo de declarações mais graves é que
elas dão mais um passo ao explorarem um preconceito bem presente na opinião
pública para o virar não apenas contra os adversários políticos – o anterior
Governo –, mas também contra “o sistema” que protege “os ricos” e oprime “o
povo”. Ora isso é exatamente o que é o populismo.
Cas Mudde e Cristóbal Rovira
Kaltwasser, num pequeno livro que acaba de sair em Portugal, “Populismo –
Uma Brevíssima Introdução” (Gradiva), escrevem: “Definimos populismo
como uma ideologia de baixa densidade que considera que a sociedade está, em
última instância, dividida em dois campos homogéneos e antagónicos – “o povo
puro” versus “a elite corrupta” – e que defende que a política deveria ser uma
expressão da volonté générale (vontade geral) do povo”
Este não é o espaço próprio
para elaborar mais sobre o sentido desta definição, mas o que nela é importante
é que permite perceber que o populismo não corresponde a uma ideologia em
concreto, antes a uma forma de fazer política. Por isso há populismos de direita
como os há de esquerda, como existem até de centro (algo que ainda esta semana notava o colunista do Financial Times, Wolfgang
Münchau).
Em Portugal a deriva
populista, este discurso do povo contra as elites, dos puros contra os
corruptos, tem sido uma das especialidades do Bloco de Esquerda. Nada de
demasiado surpreendente se pensarmos que os seus homólogos espanhóis, do
Podemos, até teorizam sobre as virtudes do populismo e o seu líder, Pablo
Iglésias, foi ao ponto de cunhar um epíteto – “la casta” – para definir todos
os seus adversários.
A novidade é a forma
despudorada como o PS e o seu líder, por circunstâncias da vida nosso
primeiro-ministro, também fizeram seu este tipo de discurso. O partido que,
mais do que assistir mudo, cerrou fileiras em torno de alguém como José
Sócrates, que defendeu os “negócios de Estado” que ele promoveu a partir de São
Bento nas circunstâncias que hoje conhecemos, devia, no mínimo, ter mais
cuidado quando atira lama para o ventilador.
Nesta quarta-feira, no
Parlamento, depois dos esclarecimentos de Rocha Andrade, só a esquerda radical
pode, por ideologia, prosseguir na sua catilinária. Infelizmente o PS também
parece querer fazer o mesmo. É talvez altura de alguém mais sereno recordar
naquela casa que o populismo “centrista” não está isento de riscos.
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