Alberto Gonçalves
Quando há ano e meio recebeu a humilhante
derrota eleitoral com o belo sorriso que não voltou a perder, o plano do dr.
Costa não se limitava à tomada de um mero cargo: o objetivo era capturar o país
Já se decidiu se os famosos 10
mil milhões “fugiram”, “voaram” ou saíram “pela porta do cavalo”? Entretanto,
devia informar-se os governantes, deputados, comentadores e acólitos sortidos
da frente de esquerda de que, independentemente da respectiva origem e destino,
aquele dinheiro não é deles. É que falam como se fosse.
Em qualquer dos casos, o
portentoso escândalo dos offshores, fundamentado num roubo imaginário,
conseguiu abafar as “tricas” da CGD, coletânea de roubos reais cujo espólio
voou para os bolsos de criaturas e instituições devidamente credenciadas pela
casta dirigente. No primeiro caso, a casta passeia indignação, instiga muito
barulho e, na condição de não se levantar surpresas, reclama um simulacro de
investigação. No segundo, a ordem é de censura. No máximo, a ralé pode
contemplar reverente a fortuna que lhe subtraem em prol do banco público e da
harmonia universal. A casta não se limita a falar como se o dinheiro alheio lhe
pertencesse: aparentemente, convenceu-se mesmo disso.
E não é só de bens materiais
que a casta se julga proprietária. Na quinta-feira, a dra. Teodora Cardoso
comparou o défice de 2,1% a um “milagre”, alcançado graças a “medidas que não
são sustentáveis”. Embora a presidente do Conselho de Finanças Públicas tenha
sido objetiva e, talvez, simpática, depressa o PCP soltou um jagunço para
avisar a senhora que o milagre é ela ainda ter salário e emprego. À luz da
tradição siberiana da seita, a ameaça aceita-se. Já as reações do PM e do PR,
formalmente mais brandas e igualmente raivosas, não se aceitam sob pretexto
nenhum. Anda por aí um cheirinho peculiar, e não é a democracia.
Apenas na última semana, o dr.
César dos Açores, que possui a inteligência de uma anémona e a sutileza de
duas, confessou que se encontra a “refletir” sobre a permanência do governador
do Banco de Portugal. O “Público”, após alertar aflito para a “fuga” de
capitais e em seguida lamentar os que aludem à “fuga” de capitais, aceitou nova
missão: enlamear o pérfido juiz Carlos Alexandre, acusado de pedir 10 mil euros
emprestados. Nas televisões, com destacado louvor para a TVI e a RTP,
“analistas” esgadanham-se para apurar quem melhor aplaude os poderes vigentes.
Nas rádios, ouvir os noticiários da Antena 1 e da TSF embaraçaria os
conselheiros do almirante Thomaz. Nas “redes sociais”, os guardiões da moral
perseguem blasfemos com afinco. E tudo, do atarantado dr. Núncio aos problemas
na suinicultura e às derrotas do Tondela, serve de argumento para tentar
enxotar Pedro Passos Coelho. Ao exigir, sem pingo de vergonha, a urgência de a
“direita” se habituar a “novas regras”, o dr. Ferro não brinca.
De que regras se trata?
Quando, há ano e meio, recebeu a humilhante derrota eleitoral com o belo
sorriso que não voltou a perder, o plano do dr. Costa não se limitava à tomada
de um mero cargo: o objetivo era o de capturar o país. Uma maioria, um governo
e, hoje que se percebe o engodo chamado Sampaio da Nóvoa, um “presidente”. A
que acresce a tal máquina de propaganda, capaz de transformar em rosas as
misérias, as mentiras e a prepotência que a cada dia nos impõem. Apesar da
divertida boçalidade dos protagonistas, convém não nos iludirmos: há aqui uma
espécie de “projeto”, e um “projeto” onde a liberdade, seja ela qual for, é
parte descartável. E indesejável.
Sei que arrisco a repetição,
mas se a casa continua a arder é difícil sentarmo-nos na sala sem mencionar o
incêndio: em outubro de 2015, os portugueses caíram nas mãos de gente perigosa.
A julgar pelas sondagens, e por defeito de visão ou de carácter, não consta que
preferissem mãos diferentes. Por isso, e porque se gastou o nome para não se
reconhecer a coisa, não vou ceder ao impulso dramático e dizer que chegámos ao
– esperem um instante – fascismo. O caminho até lá, porém, é parecidíssimo com
este.
Notas de rodapé:
1. Numa era em que
o Estado é tão eficaz a vigiar a vida dos cidadãos, é consolador descobrir
brechas nesse sufoco. Consola um bocadinho menos perceber que as brechas não
beneficiam aqueles que cumprem a lei, mas justamente os que a violaram. Mas
ainda assim é revigorante aprender que, segundo o próprio diretor dos serviços
prisionais, não existe um “protocolo” de atuação para fugas de presidiários. O
que fazem então as autoridades quando alguém se evade da cadeia? Ligam para o
112 e, aparentemente, esperam. Com sorte, os fugitivos regressam, ou porque se
esqueceram de qualquer coisa na cela, ou porque têm saudades. Com azar, os
fugitivos não voltam a ser vistos. É pena que tamanha descontração não se
aplique a outros ramos do Estado: com ou sem “offshores”, com ou sem falhas
informáticas, o fisco, por exemplo, está repleto de “protocolos” destinados a
garantir que o nosso dinheiro não lhe escapa. Se escapar, em penúltima
instância vamos parar à prisão. Em última, escapamos nós.
2. Leio que Barack
Obama assinou um contrato milionário para escrever as memórias dos seus
mandatos presidenciais. Aguardo para ler as críticas dos indígenas a essa
infâmia: um antigo chefe de Estado não pode revelar conversas e momentos
privados; trata-se de um reles ajuste de contas; aquilo é de um ressentimento
intolerável; etc. Isto, claro, se a obra mencionar o “eng.” Sócrates. Se não
mencionar, as críticas serão nulas, mas o desplante maior: quem julga o sr.
Obama que é para ignorar a criança que sonhava com ventoinhas, o governante que
vendia moinhos, o socialista que, desconfiado do mercado, compra os próprios
livros e o empreendedor que, sensível ao investimento, paga a outros para
escrevê-los?
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
4-3-2017
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