Aparecido Raimundo de Souza
1
O telefone toca no enorme call center e uma das moças plantonistas
acorre atender.
- Disque Silêncio, Ana Júlia,
boa noite! Em que posso ajudar?
- Boa noite, senhorita. Eu
queria fazer uma reclamação.
- Pois não?
- Tem uma betoneira desde as
sete horas da manhã aqui na minha rua e até agora...
- Senhor, por gentileza. Tem o
quê?
- Betoneira. Uma betoneira.
- ??!!
- Sabe o que é uma betoneira?
- Senhor, isso aí não é com a
gente...
- Como não? Ela está fazendo
um barulho dos infernos. São quase dez e quarenta da noite.
- Desculpe, não podemos
resolver seu problema.
2
- Veja bem. Tudo o que faz
barulho ou provoca confusão na cidade não é com vocês que a gente reclama?
- Sim.
- Então. A betoneira está
incomodando a vizinhança. Vocês não têm um pessoal especializado que vem ao
local e mede a intensidade do barulho?
Silêncio.
- Bem, senhor, é que...
- E então? A betoneira...
- Senhor, veja bem. Volto a insistir. Esse tipo de reclamação...
não tem nada a ver com a gente.
- OK. E a quem, então, eu devo
me dirigir?
- Um minuto, por favor.
3
A moça se retira da linha e em
seu lugar entra outra.
- Boa noite, senhor, pois não?
- Boa noite. Como é seu nome?
- Seriema.
- Dona Siriema, eu...
- Seriema, senhor.
Seriema.
- Bem é o seguinte: liguei aí
para o disque silêncio porque uma betoneira, lá embaixo, na rua está amolando
desde as...
- Qual seu endereço, por
gentileza?
- Rua dos Salvos em Jesus,
número 123, Edifício Glória Eterna, apartamento 601, Bairro dos Espíritos da
Paz.
- E o que está acontecendo?
- O problema, como eu
expliquei um minuto atrás à Ana Júlia, que me atendeu, é a betoneira...
- De que forma ela está
incomodando?
- Por Deus, moça. Com o
barulho que provoca.
- Senhor, eu compreendo. Mas
que espécie de barulho?
- Infernal. Desde as sete
horas da manhã. Neste exato momento passam das vinte e três.
4
- Estou entendendo... a
begorneira...
- Betoneira, dona, betoneira.
- Certo. Betoneira. Incomoda
só ao senhor?
- À vizinhança inteira, à
quadra toda, até o capeta está enfezado.
- Mas só o senhor ligou...
- Filha, pelo amor de Deus. Eu
trabalho o dia todo. Preciso dormir. A betoneira não dá folga. Saí pra
trabalhar, voltei, e lá está ela, bela e formosa.
- Eu...
- A senhorita Siriema por
acaso sabe o que é uma betoneira?
- Senhor, meu nome é Seriema.
Seriema, com “e” e não com “i”. Ok?
- Ok. Desculpe!
- Pois bem, voltando ao
barulho da begorneira... entenda, o Disque Silêncio...
- Senhorita Si... digo...
Seriema, eu insisto. Não é begorneira. É betoneira. A senhorita por acaso sabe
o que é uma betoneira?
- Claro, senhor.
- Então, me diga: o que é uma
betoneira?
- Um minuto, por obséquio.
5
A funcionária sai da linha.
Menos de cinco minutos entra um cidadão de voz estrondeante.
- Boa noite. Em que posso
ajudá-lo?
- Com quem falo?
- Eusébio, às suas ordens.
- Seu Eusébio, meu problema é
o seguinte: liguei para fazer uma reclamação.
- Por certo. Estamos aqui para
isso. Por favor, que tipo de reclamação deseja fazer?
- Tem uma betoneira na minha
rua e...
- Senhor, isso não é com a
gente. O ilustre precisará desligar e entrar em contato imediatamente com a
prefeitura.
- Por quê?
- Porque são eles que cuidam
dessa parte.
- Mas meu amigo, entenda. A prefeitura nada tem a ver com o barulho.
- Pelo contrário, senhor, tudo
a ver. Procure seguir meu raciocínio. Não é uma betoneira que está causando
toda essa encrenca?
- Sim.
- Então. O senhor deve ligar
para a prefeitura.
- Desculpe a minha burrice,
mas eu insisto com certa veemência: o problema do barulho não é com vocês do
Disque Silêncio?
- Perfeitamente. O senhor
ligou para o lugar certo.
- Então...
- Todavia, nesse caso,
especificamente, como se trata de uma betoneira, o senhor carece de ligar para
a prefeitura. Foi ela quem deu a permissão para a betoneira estar aí no seu
bairro. Infelizmente não vamos poder lhe
ajudar. Sinto muito. Mais alguma informação, senhor?
- Eu só queria parar a
betoneira...
- OK. Sentimos profundamente
não podermos atendê-lo a contento. Como último favor, pedirei ao senhor que não
desligue e continue na linha para que nos responda se foi bem atendido. Seu
telefonema para o Disque Silêncio alcançou os objetivos que o senhor esperava?
6
- Seu Eusébio, desculpe. Faria
a gentileza antes de encerrarmos nosso bate papo de me responder a uma
perguntinha?
- Perfeitamente, meu nobre.
Estamos aqui para isso. Ajudar as pessoas naquilo que for possível. Veja o seu
caso, por exemplo...
- Seu Eusébio, uma curiosidade
está me corroendo, por dentro...
- Curiosidade, perguntinha ou
reclamação?
Ao dizer isso, o tal do seu
Eusébio encerra com uma risada sem graça.
- Na verdade, uma curiosidade
atrelada a uma perguntinha.
- Se estiver ao meu alcance...
- Tenho certeza que estará.
- Então, por favor, vá em
frente... sou todo ouvidos.
- Seu Eusébio, seguinte: por
acaso o senhor tem mãe?
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. Do sitio “Shangri-Lá”. 25-4-2017.
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