quarta-feira, 26 de abril de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Jogo do empurra

Aparecido Raimundo de Souza

1
O telefone toca no enorme call center e uma das moças plantonistas acorre atender.
- Disque Silêncio, Ana Júlia, boa noite! Em que posso ajudar?
- Boa noite, senhorita. Eu queria fazer uma reclamação.
- Pois não?
- Tem uma betoneira desde as sete horas da manhã aqui na minha rua e até agora...
- Senhor, por gentileza. Tem o quê?
- Betoneira. Uma betoneira.

- ??!!

- Sabe o que é uma betoneira?
- Senhor, isso aí não é com a gente...
- Como não? Ela está fazendo um barulho dos infernos. São quase dez e quarenta da noite.
- Desculpe, não podemos resolver seu problema.

2
- Veja bem. Tudo o que faz barulho ou provoca confusão na cidade não é com vocês que a gente reclama?
- Sim.
- Então. A betoneira está incomodando a vizinhança. Vocês não têm um pessoal especializado que vem ao local e mede a intensidade do barulho?

Silêncio.

- Bem, senhor, é que...
- E então? A betoneira...
- Senhor, veja bem.  Volto a insistir. Esse tipo de reclamação... não tem nada a ver com a gente.
- OK. E a quem, então, eu devo me dirigir?
- Um minuto, por favor.

3
A moça se retira da linha e em seu lugar entra outra.
- Boa noite, senhor, pois não?
- Boa noite. Como é seu nome?
- Seriema.

- Dona Siriema, eu...
- Seriema, senhor. Seriema. 
- Bem é o seguinte: liguei aí para o disque silêncio porque uma betoneira, lá embaixo, na rua está amolando desde as...


- Qual seu endereço, por gentileza?
- Rua dos Salvos em Jesus, número 123, Edifício Glória Eterna, apartamento 601, Bairro dos Espíritos da Paz.
- E o que está acontecendo?

- O problema, como eu expliquei um minuto atrás à Ana Júlia, que me atendeu, é a betoneira...
- De que forma ela está incomodando?
- Por Deus, moça. Com o barulho que provoca.

- Senhor, eu compreendo. Mas que espécie de barulho?
- Infernal. Desde as sete horas da manhã. Neste exato momento passam das vinte e três.

4
- Estou entendendo... a begorneira...
- Betoneira, dona, betoneira.
- Certo. Betoneira. Incomoda só ao senhor?
- À vizinhança inteira, à quadra toda, até o capeta está enfezado.
- Mas só o senhor ligou...

- Filha, pelo amor de Deus. Eu trabalho o dia todo. Preciso dormir. A betoneira não dá folga. Saí pra trabalhar, voltei, e lá está ela, bela e formosa.
- Eu...
- A senhorita Siriema por acaso sabe o que é uma betoneira?

- Senhor, meu nome é Seriema. Seriema, com “e” e não com “i”. Ok?
- Ok. Desculpe!
- Pois bem, voltando ao barulho da begorneira... entenda, o Disque Silêncio...

- Senhorita Si... digo... Seriema, eu insisto. Não é begorneira. É betoneira. A senhorita por acaso sabe o que é uma betoneira?
- Claro, senhor.
- Então, me diga: o que é uma betoneira?
- Um minuto, por obséquio.

5
A funcionária sai da linha. Menos de cinco minutos entra um cidadão de voz estrondeante.
- Boa noite. Em que posso ajudá-lo?
- Com quem falo?
- Eusébio, às suas ordens.

- Seu Eusébio, meu problema é o seguinte: liguei para fazer uma reclamação.
- Por certo. Estamos aqui para isso. Por favor, que tipo de reclamação deseja fazer?
- Tem uma betoneira na minha rua e...

- Senhor, isso não é com a gente. O ilustre precisará desligar e entrar em contato imediatamente com a prefeitura.
- Por quê?
- Porque são eles que cuidam dessa parte.

- Mas meu amigo, entenda.  A prefeitura nada tem a ver com o barulho.
- Pelo contrário, senhor, tudo a ver. Procure seguir meu raciocínio. Não é uma betoneira que está causando toda essa encrenca?
- Sim.

- Então. O senhor deve ligar para a prefeitura.
- Desculpe a minha burrice, mas eu insisto com certa veemência: o problema do barulho não é com vocês do Disque Silêncio?
- Perfeitamente. O senhor ligou para o lugar certo.

- Então...
- Todavia, nesse caso, especificamente, como se trata de uma betoneira, o senhor carece de ligar para a prefeitura. Foi ela quem deu a permissão para a betoneira estar aí no seu bairro.  Infelizmente não vamos poder lhe ajudar. Sinto muito. Mais alguma informação, senhor?

- Eu só queria parar a betoneira...

- OK. Sentimos profundamente não podermos atendê-lo a contento. Como último favor, pedirei ao senhor que não desligue e continue na linha para que nos responda se foi bem atendido. Seu telefonema para o Disque Silêncio alcançou os objetivos que o senhor esperava?

6
- Seu Eusébio, desculpe. Faria a gentileza antes de encerrarmos nosso bate papo de me responder a uma perguntinha?
- Perfeitamente, meu nobre. Estamos aqui para isso. Ajudar as pessoas naquilo que for possível. Veja o seu caso, por exemplo...

- Seu Eusébio, uma curiosidade está me corroendo, por dentro...
- Curiosidade, perguntinha ou reclamação?

Ao dizer isso, o tal do seu Eusébio encerra com uma risada sem graça. 

- Na verdade, uma curiosidade atrelada a uma perguntinha.
- Se estiver ao meu alcance...
- Tenho certeza que estará.

- Então, por favor, vá em frente... sou todo ouvidos.
- Seu Eusébio, seguinte: por acaso o senhor tem mãe?


Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do sitio “Shangri-Lá”. 25-4-2017.

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