Helena Matos
Os seus falantes nativos são de esquerda,
mas para se ser alguém em Portugal ou para sobreviver, sem ser acusado de
populismo, o domínio do português-progressivo é imprescindível.
Desacato.
O desacato
passou de expressão que outrora designava confrontos entre adeptos de futebol e
outras pessoas incapazes de controlarem os seus ímpetos para referir a
performance através da qual os portugueses demonstram o seu extraordinário amor
pelos serviços públicos.
Vejamos, por exemplo, as pessoas que agora chegam às 4h da madrugada à porta dos Registos Centrais, em Lisboa. Ao que se sabe, estas almas a dado momento
entram em desacatos. A avaliar pelas notícias, estas pessoas não desacatam
porque o impacto das 35 horas nos serviços públicos fez regredir o atendimento
nesses alegados serviços para os níveis de eficiência dos anos 80 do século
passado. Muitos menos desacatam por verem os serviços públicos cativos dos
sindicatos. Nada disso. O desacato acontece porque algumas pessoas não sabem
respeitar o seu lugar na fila. Seja ela nos Registos Centrais ou no terminal dos barcos do Barreiro, o bom cidadão tem de saber estar na fila.
Aproveitar para corrigir a postura corporal. Exercitar a mente. Aderir ao
multiculturalismo. Combater as fakes news do género –
“Dizem que na Loja do Cidadão, em Chelas, estão a dar esta certidão próprio
dia.”
Para evitar os desacatos não
há que ter melhores serviços públicos (aliás a própria designação “melhores”
pressupõe uma avaliação eivada dos malefícios da meritocracia). Temos sim que
formar os cidadãos, integrar a educação para a fila na disciplina Educação para
a Cidadania. Nota: não confundir desacato com incidente (ver abaixo).
Fogo florestal.
Esta
designação antiquada. tão antiquada que já existia no Estado Novo, deu lugar a
uma expressão muito mais dinâmica: o fogo arde para ofuscar o PS. De facto
nunca as coisas assim tinham sido postas na sua límpida clareza. Ou melhor
dizendo ofuscante labareda.
Até 2015 os fogos florestais
eram uma tragédia para a qual se procurava uma explicação no ordenamento do
território, nos sistemas de combate aos incêndios, no tipo de floresta que
temos e, heresia das heresias em português-progressivo, incompetência dos
governos. Agora os fogos existem porque alguém quer prejudicar o PS. Os autarcas
denunciam a desorganização no terreno mas essas denúncias existem porque eles querem prejudicar o PS e portanto não fazem denúncias mas sim provocações As golas contra o fumo são uma fraude mas dizê-lo é alarmismo porque essa revelação vai prejudicar o PS. Por sinal as referidas golas
foram vendida por preços absurdos mas só quem quer prejudicar o PS vê nesse negócio algo de questionável… Em resumo, tal como o fogo não é um fogo mas sim uma
intenção de ofuscar o PS também os factos não são factos mas sim
intenções contra ou a favor do PS.
Populista.
Político
eleito que não goza da simpatia da maioria que sustenta o nosso
esclarecido governo e boa parte da comunicação social. A definição pode parecer
parcial, mas é a que atualmente vigora e isso é o que interessa num
dicionário. Por exemplo, um populista pode continuar a obra dos seus
antecessores – caso de Trump acerca do muro na fronteira com o México – mas
isso não impede que ele seja considerado populista e, no caso concreto, autor
do muro. Em geral, o populista nunca é apenas populista, mas sim um repositório
de anátemas. Assim temos populistas fascistas como Bolsonaro que até agora
respeitou todas as regras da democracia. Temos populistas porque nós dizemos
que é populista e porque tem o carro desarrumado, caso de Boris Johnson.
Também temos os “graças a Deus nós não somos populistas” como a
responsável da cidade de Paris, Anne Hidalgo, que achou por bem homenagear
e financiar as capitãs Carola Rackete e Pia Klemp que levam para Itália os
imigrantes que recolhem no Mediterrâneo, o que fez delas umas paladinas
anti-populista Salvini. Ora acontece que a França dos anti-populistas Macron e
Hidalgo, a dita França que homenageia as capitãs Carola Rackete e Pia Klemp é o
mesmo país cuja polícia larga na Itália do populista Salvini vários migrantes que os seus governantes não pretendem manter no seu território.
A alimentação é o novo sexo.
No dicionário português-progressivo todo aquele léxico da privação outrora
aplicado ao sexo antes do casamento passou a ser utilizado para as opções
alimentares. A palavra dominante continua a ser “sem” só que agora aplicada aos
alimentos e não ao sexo. Agora há manteiga sem gordura. Leite sem
lactose. Pão sem glúten. Hamburgueres sem carne. Café sem cafeína. Doces sem
açúcar. Bolos sem ovo… O legislador anda num virote para impedir os jovens de ver publicidade a refrigerantes, gelados, chocolates… até aos 16 anos. Os
adolescentes portugueses podem mudar de sexo sem relatório médico, outra coisa
bem diferente é pretenderem ver
anúncios às bombocas.
Incidente e rixa.
O que
existe mais parecido com a definição de incidente ou rixa no dicionário de
português-progressivo é aquele verso de Camões sobre “Um não sei quê, que
nasce não sei onde; vem não sei como; e dói não sei porquê.” Veja-se esta
notícia sobre um incidente recente: Três jovens e um agente da PSP ficaram feridos na sequência de uma rixa entre dois grupos, que envolveu cerca de 100 pessoas, na estação de comboios de Queluz-Belas, em Queluz.
Ou esta: Uma discussão entre dois grupos por causa de um lugar de estacionamento terminou aos tiros, neste sábado, no Monte da Caparica, Almada, sabe a TVI. Os suspeitos fugiram do local após a chegada da GNR. Um
deles encontra-se armado. Foram disparados quatro tiros. Ninguém foi
atingido, mas uma mulher grávida, pertencente a um dos grupos, teve de ser
assistida no local, depois de se ter sentido mal
Ou ainda esta: Amadora: rixa com 40 pessoas termina com duas detenções O incidente que envolveu cerca de 40 pessoas aconteceu no Casal de São Brás, na Amadora. Os agentes da PSP envolvidos na operação foram apedrejados
Quem? Como? Por quê? Sabe-se
tão pouco sobre os protagonistas destes incidentes que as notícias são
ilustradas com fotos de polícias. Em português-progressivo temos entrevistas no
mundo inteiro. O que não se consegue nessa novilíngua é o retrato dos
protagonistas destas notícias. Afinal para um falante de português-progressivo
é mais difícil ir ao Casal de São Brás na Amadora do que ao Texas.
Título e Texto: Helena
Matos, Observador,
28-7-2019
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