Aparecido Raimundo
de Souza
NÃO VIA NADA ALÉM DO QUE
me deveria ser permitido enxergar. Meus olhos se mostravam cansados, e algo que
desconhecia fazia-os piscarem intermitentemente. Afastei num esgar repentino a
visão do quadro que espiava. Cocei as pálpebras com os dedos da mão esquerda e
fechei os ouvidos às vozes que me chegavam deturpadas. As horas no meu relógio
de pulso pareciam sem pressa de seguirem os ponteiros, enquanto o dia se fazia
pesado na janela que me descortinava a praça da igreja logo em frente. Nela,
crianças das mais diversas idades corriam, gritavam e soltavam pipas enquanto
moradores de rua se acotovelavam como urubus nas escadas do coreto.
Era a vida seguindo sua trajetória dentro de um sem-limite que se renovava
como água de nascente brotando para alimentar o rio que cortava a cidade, serpenteando
seu caminho em direção ao mar. Um bando de pombos deixou a cumeeira do telhado
e rasgou o céu num alarido de arrulhos descomedidos. Lembrava um moinho
triturando a alma da carne. Do infinito, um sol anêmico descia cansativo sobre
tudo, como se temesse ser prisioneiro da noite que se avizinhava. Sua presença,
ainda que lenta, se fazia latente como uma bofetada no meio da minha cara. Um
safanão como um murro de punho fechado.
Às minhas costas, um espelho enorme dependurado em frente ao hall de acesso ao meu apê refletia meu
rosto magro completamente distorcido. Havia uma fenda nele, e por essa razão
minha aparência se desvirtuava, dando a impressão de que eu fora cortado ao
meio enquanto Strauss nem imaginava compor Tu
qui regis totum orbem. Queria sair dali correndo, descer as escadas em
desabalada carreira e me envolver nas malhas da jovem que me esperava lá
embaixo no térreo, agarrada ao portão. Ingerir, de um só gole, a paixão devassadora
que nos queima sem medo de nos embriagarmos da beberagem de dois corações
batendo na mesma reciprocidade.
Esse contragosto que me atacava, todavia, continuava se instalando em
meu ser como o trote de um cavalo veloz. O meu eu pedia clemência. Não queria
morrer. Pelo menos naquela hora. Pensava em gritar, mas a vontade sucumbia na
garganta como um berro lacônico que não saía boca afora. Tudo continuava
desigual. Seguia eu, tíbio personagem, atado a cordas invisíveis, bestificado, pegureiro
de devaneios apascentando sonhos ônticos que não se tornavam realidade. E não
só isso. Ao descaso de mim mesmo, me distraía, me corrompia não vendo nada, nada
além do que deveria ser descortinado diante da minha obstinação.
Não existia um círculo perfeito girando ali ou acolá. Um, dois, três,
quatro… O vento ameno persistia entrando devagar, vadio, retouçando pelas
paredes como se tivesse sobressaltado por alguma estupefação fantasmagórica. Passava
pelos móveis, ociosamente brejeiro. Escangalhava meus cabelos… cinco, seis,
sete, oito… O espelho cúmplice se defluía irritadiço, desfigurado, submerso em mácula.
De repente, o que dele restou se partiu e se fragmentou em mil pedaços. Uma
quizília infernal feriu minha alma, estraçalhou meus tímpanos, magoou meu
interior e me pôs em frangalhos.
Tudo girou, girou numa velocidade incontrolável, como se o carrossel do
parque logo ali adiante proado à cissura da igreja tivesse saído do seu estado
normal, e num instante inexplicável se transformasse numa confusão desordenada.
O alvoroço e a bagunça, entrelaçados aos gritos e aos rebuliços das crianças, duplicaram
aos pedidos de socorro, nove, dez, onze, doze… Em paralelo, os infantes correram
para um lado e para outro, os pais se desesperaram, as mães se esgoelaram
pedindo socorro. Transeuntes alheios se misturaram à fervura e ao descompasso,
e igualmente como os sem-teto do coreto, emporcalhavam mais ainda a areia sujismunda
do parquinho.
Percebi, num minuto voraz, não haver divisão entre pirralhos brincando,
cachorros e gatos fazendo suas necessidades fisiológicas sem se importarem com
o proibido das placas. E eu ali confinado
dentro da sala, estatelado, preso ao chão, não via nada além do que deveria ser
permitido desembuçar. Queria sair porta afora, beber a volúpia que fluía do
corpo daquela jovem mulher… alcoolizar a afeição, consternar o amor… Sobretudo,
perpetuar esse gostar tornando infinita a sua pureza dentro de mim. Entretanto,
razões adequadas se conflitaram e se testemunharam numa peleja ímpar e politicamente
inadequada. Talvez por isso, ainda agora, acalmada a fuzarca da praça, perdida
a moça bonita que me esperava, me flagre como alma penada carregando seu
próprio caixão por sobre as sepulturas do meu futuro, com todos os pedaços da
minha insensatez, e pior: da atimia que restou espalhada pelos demais cantos do
pavimento onde eu me encontrava.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro. 23-7-2019
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