quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O ADN desta esquerda



A moção de censura do BE é mais um exemplo da política "à portuguesa", em que os conteúdos e efeitos substanciais e normais das instituições são sacrificados aos efeitos colaterais, aos lances de teatro, aos desígnios inconfessáveis. E mais uma prova de que a proclamação retórica de princípios e objectivos, tão extraordinários como garantidamente irrealizáveis ou incongruentes, continua a resultar.
O BE surgiu na esquerda e quis ser uma alternativa ao possibilismo e pragmatismo do PS que, para os bloquistas, traía as grandes ideias progressistas; e ao conservadorismo operário do PCP, que consideravam bafiento, não cool.
A ideologia e prática do BE tem sido uma modalidade doméstica do esquerdismo, ou gauchismo, que surgiu nos anos sessenta, com outras correntes do que Aron chamou os "marxismos imaginários". Como não ficava bem ser pelo "socialismo real" soviético, que, no Ocidente, depois de Soljenitsyne, era sinónimo do Gulag e da ditadura, e porque os trabalhadores europeus, mesmo os das centrais comunistas, estavam a "aburguesar-se", os esquerdistas avançaram com uma série de leituras, releituras e reinterpretações dos escritos de Marx, para reanimar o fervor revolucionário e transformista na esquerda.
Isto trazia uma certa esquizofrenia ideológica que era então de bom tom; e as contradições também estavam na moda desde que a lógica aristotélica fora apresentada como uma falácia burguesa pelos muros de Paris, em Maio de 68: os esquerdistas faziam declarações em que equiparavam os comu- nistas ortodoxos de Moscovo a "sociais-fascistas" e reivindicavam outros mestres e deuses: como Herbert Marcuse, o filósofo que descobrira a "tolerância repressiva" do capitalismo, e Mao Tse Tung, o Grande Timoneiro, responsável por operações de cunho humanista como o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural.

Era também o tempo da acção armada, com o Setembro Negro e os núcleos terroristas alemães, italianos, japoneses, que matavam juízes e banqueiros e os desgraçados que passavam ali por acaso, sequestravam atletas olímpicos, ministros da OPEP e faziam explodir aviões. Eram a coqueluche dessa "nova esquerda" que queria voltar aos métodos de Bakunine, Trotsky e Lenine, para incendiar o mundo. E que passaram os seus métodos à América Latina - ao Brasil, ao México, à Argentina, ao Uruguai -, da ALN, de Marighela, aos Tupamanos.
Os resultados são conhecidos: na Europa, apesar da violência e das mortes, o "Estado burguês" do capitalismo repressivo aguentou-se, as redes terroristas acabaram desmanteladas, uma parte dos seus activistas desapareceu em combate, outros foram encarcerados, ou converteram-se à esquerda caviar e até aos partidos do sistema onde fizeram auspiciosa carreira. Na América Latina o radicalismo libertário levou a uma "guerra suja" que acabou mal para todos.
Em Portugal, estes movimentos esquerdistas armados com algum protagonismo nos anos finais do Estado Novo, resurgiram no post-74 com vários partidos políticos, que recrutavam sobretudo entre jovens universitários e quadros de classe média. Os votos nunca foram muitos e, fora a acção anti-PC do MRPP, tratou-se mais de folclore.
O Bloco tratou de excluir a violência física dos seus mandamentos práticos. Mas manteve uma retórica maximalista, com a esperança de assim alimentar uma massa de eleitores de "esquerda" que achasse pouco o PS e muito PC.
A opção do Bloco era a opção por uma Nova Esquerda, nas "regras do jogo" democrático, que fosse mais às urnas do que para a rua e procurasse pescar votos entre o PS e o PCP e os desgostosos da velha esquerda.
Assim abriu o caminho para a ressurreição dos temas milenários da esquerda utópica, e uma crítica radical do quotidiano da sociedade burguesa, uma agenda como a da "esquerda unida" de 1975.
A moção para 10 de Março, que parece ter feito titubear os partidos da oposição, vem nesta linha. Já se sabe que não passa, mas atrapalha os camaradas do PC e até os mais burgueses do PS e do PSD. Mas o que é preciso, afinal, é criar "factos políticos"...
Maria José Nogueira Pinto, Diário de Notícias, 17-02-2011

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