Rui Ramos
A novidade de ontem na
campanha eleitoral britânica foi o apelo de Russell Brand ao voto no Partido Trabalhista. Fez manchete,
abriu noticiários. Quem é Russell Brand? Um humorista televisivo que há uns
tempos decidiu fazer carreira como uma espécie de Tiririca enxertado de
Varoufakis. Tornou-se assim o grande animador das “assembleias do povo contra a austeridade”. E suscitou
logo, na Grã-Bretanha, a mesma interrogação que Jon Stewart e outros parodiantes justificam nos EUA:
por que é que, quando tratam de política, os humoristas da rádio e da televisão
parecem ser todos de esquerda? Por que é que não existem humoristas à direita?
A pergunta vale para a
Grã-Bretanha e para os EUA, como poderia valer para Portugal. Há umas semanas,
quando o Observador teve o atrevimento de debater a Constituição, ficou mais
uma vez à mostra a regulamentação política do piadismo rádio-televisivo: pode-se gozar com Cavaco Silva, mas
não com Francisco Louçã; fica bem atacar as “tias” de Cascais, mas jamais as
“figuras” da cultura; é meritório desmontar a austeridade, mas nunca duvidar do
despesismo; vale tudo contra os católicos, mas nada contra os jihadistas; e,
claro, a Constituição não é para rir.
À esquerda, gosta-se de dar uma razão muito auto-congratulatória para este
humorismo enviesado: só se faz humor contra a autoridade, e a direita é a
autoridade. É uma explicação pouco persuasiva, porque não é certo que a
esquerda, instalada no Estado e principal zeladora das invasões governamentais
da sociedade e da economia, não possa ser ou estar com a autoridade. À direita,
prefere-se a teoria da conspiração: no Reino Unido, por exemplo, suspeita-se do
esquerdismo da direcção da BBC. Também não chega, porque não é certo que, caso
existisse uma massa enorme e aplaudida de piadistas e parodiantes de direita,
as administrações das televisões, mesmo a da BBC, os pudessem boicotar
indefinidamente.
É preciso considerar outras
razões. Em primeiro lugar, as vantagens que uma máscara de esquerdismo tem para
um humorista. A história já célebre de Justine Sacco, a directora de relações públicas de uma das
maiores empresas americanas da internet, a IAC/InterActivCorp, demonstra os
riscos do humor sem uma boa caução de esquerda. Em 2013, antes de embarcar num
voo para a África do Sul, Sacco passou uma última vez pelo Twitter: “Vou para
África. Espero não apanhar Sida. Claro que não: sou branca!” A piada caiu no
radar de um activista das rede sociais, que logo mobilizou uma gigantesca bola
de neve de raiva digital, e conseguiu forçar a IAC a despedir Sacco. O mais
patético de toda a história é que Sacco estava apenas a permitir-se um pouco de
humor anti-racista, em função aliás dos seus antecedentes (a família, na África
do Sul, estivera ao lado do ANC contra o apartheid). Só que ela não era
conhecida como activista de esquerda, mas apenas como directora de uma grande
empresa.
Dita por Russel Brand ou Jon
Stewart, a piada de Sacco teria sido devidamente apreciada. Porque – e é esse o
sentido do politicamente correcto – o que interessa não é o que se diz, mas o
que é, ou melhor, o que pretende ser quem o diz. A esquerda zela supostamente
pela igualdade, ama tudo o que é pobre e não-europeu, e portanto é insuspeita:
pode dizer tudo, como o bom católico de outrora que, munido das devidas
dispensas eclesiásticas, comia carne à sexta-feira. Ao situar-se à esquerda, um
humorista está a garantir que nunca dará a ninguém o direito de se sentir
ofendido. Alguém, a propósito, notou que, hoje, um comediante verdadeiramente provocador deveria ser de direita.
Acontece que, tal como Justine Sacco, não sobreviveria muito tempo à indignação
barata das redes sociais.
O outro motivo para a opção de
esquerda de um humorista é esta: à esquerda, parece dar-se uma tremenda
importância a este tipo de profissões. Russell Brand tornou-se uma referência
política no Reino Unido. Ed Miliband foi falar-lhe, como a uma
espécie de velho guru. Ninguém imagina um episódio análogo à direita. É
verdade: David Cameron não tem um humorista com dezenas de milhares de
seguidores nas redes sociais para falar com ele, mas mesmo que tivesse, talvez
não estivesse no topo da sua agenda de campanha.
O “esquerdismo”, que é
aliás uma coisa diferente da esquerda, está hoje ligado à palavra, não à acção.
Outrora, um esquerdista sentiria a obrigação de estar organizado, de pertencer
a um partido, a um sindicato, a um movimento. Hoje, o esquerdismo é virtual,
está na rádio e na TV, na rede social, na coluna de jornal, na sala de aula, à
mesa do restaurante. É o esquerdismo histriónico de Varoufakis, com a sua
cátedra, as suas roupas caras, a sua casa com vista para a Acrópole, o seu
piano. Não exige qualquer mudança de comportamento pessoal, mas em
contrapartida requer, como mais um sinal de distinção, a vocalização histérica
do escárnio do sistema a que se pertence e que se serve. Como tal, é uma
ideologia muito jeitosa para a classe média que resultou da escolarização, da
urbanização e da nova indústria de serviços, e que sabe combinar o que a
direita lhe dá em termos de economia de mercado, e o que a esquerda lhe
empresta em termos de boa consciência igualitária. A carteira à direita, a boca
à esquerda. Humor de esquerda, seriedade de direita. Os humoristas trabalham
para essa classe, e o riso que cultivam não é, como há uns anos explicou Nick Cohen, o riso de quem é pobre e não tem poder. Pelo
contrário: é o riso vermelho do privilégio.
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