sexta-feira, 18 de setembro de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Velho filme

Aparecido Raimundo de Souza 

ALGUNS DIAS ATRÁS, fui com a minha filha Amanda a uma espécie de locadora escolher filmes para o final de semana prolongado. Aqui perto de onde moro, apesar de hoje em dia se achar tudo na Internet, ainda existe uma dessas lojinhas funcionando em plena efervescência da modernidade, que sobrevive alugando radiovitrolas, videocassetes, gramofones televisores em preto e branco, bem ainda DVDs, fitas VHS, discos 78 rotações, bolachões, ou (LPs), enfim, uma infinidade de itens dos tempos do ronca a se perderem de vista...

Confesso que adoro esses antiquários, hoje conhecidos popularmente como 'sebos', especializados em coisas que nos fazem lembrar dos bons tempos em que éramos felizes e não tínhamos consciência do que enfrentaríamos num futuro próximo, e o melhor de tudo, sem a necessidade de fazermos uso constante das enganosas ‘tecnologias de ponta’, tecnologias que, na verdade, prestam apenas para nos aprisionarem e nos fazerem escravos. 

Perco horas, tentando descobrir um título que me agrade, alguma coisa nova, mas sempre levando em consideração algo visto e revisto ao longo dos meus quase setenta anos de idade. Com esta ideia, caminho, parando aqui e ali, os olhos abertos, vasculhando, atento, as estantes e prateleiras. Demoro uma eternidade enervante para chegar do suspense ao drama, da aventura ao pornô, da ação ao romance, ou da comédia à aventura. 

Nesta viagem bacana, de volta ao ‘meu ontem’ diga-se de passagem, uma quadra  recente, eis que, de repente, ao alcance das mãos aparece, como por encanto, o clássico cinematrográfico do diretor húngaro Ladislao Vajda, o premiadíssimo  ‘Marcelino Pão e Vinho’, romance escrito por José Maria Sánches Silva, estrelado pelo então Pablito Calvo, Rafael Rivelles, Juan Calvo e Fernando Rey. 

Como num passe de mágica, esqueço da minha filha (que igualmente se flagra pasma e boquiaberta diante de uma gôndola com velhas e surradas bonecas e outros brinquedos que ela nem sabia existirem) e volto correndo à infância, quando moleque de calças curtas, pais separados, morando com meu avô João Raymundo, no Bairro do Lauzane Paulista, perto de Santana, em São Paulo. Recordo um certo presente que mamãe (já falecida, que Deus a tenha!) meu deu ao completar oito anos. 

Um álbum de figurinhas (ao todo 403) com toda a saga dessa película. Lembro como se fosse hoje. Assim que tive o livro ao alcance das mãos, beijei e abracei longamente a dona dos meus dias. No ano em que este drama religioso foi filmado, 1954, eu contava apenas uma primavera. Mamãe foi ver o filme e se apaixonou pelo enredo comovente e resolveu colecionar as figurinhas (colando uma a uma) para me dar de presente quando ficasse maior e entendesse a vida como, de fato, ele é. 

Com que emoção envolvente ficava a olhar, por longo tempo, e a repassar as páginas, mostrando, com orgulho inusitado aos meus coleguinhas de sala do grupo escolar, o enorme caderno colorido com a história de Marcelino, o menino que furtava pão na cozinha do convento (todas as manhãs e tardes) e levava para alimentar Jesus. E não só isso: havia um particular incógnito e misterioso. Marcelino conversava longamente com Jesus Cristo e o chamava de ‘amigo’. 

Só para lembrar um pouco, Marcelino, órfão desde tenra idade foi criado pelos doze frades de um convento espanhol. Aos seis anos, se viu adotado por um rico e poderoso Conde. Mas ele se sentiu infeliz, triste e solitário na sua nova casa. Resolveu, então, fugir e seus amigos frades ao encontrarem só e abandonado, o esconderam. Em seu quarto (uma espécie de sótão) com um amontoado de cacarecos, existia um crucifixo enorme, maior do que os normais. 

Com a inocência e o coração puro de uma criança esperta e inteligente, Marcelino começou a entabular conversa com o tal homem do crucifixo. Sem que os padres soubessem, ou imaginassem, o infante passou a roubar, na cozinha, pão e vinho para seu novo amigo. E o homem da cruz, incrivelmente dela se desgarrava e vinha comer, voltando, em seguida para o madeiro. Nesse interregno de tempo, o conde desconfiado que os franciscanos escondiam o piá, decidiu castigar os religiosos, e, realmente, o fez com selvageria descomedida, ateando fogo no monastério.

Marcelino, então, recorre a seu fiel companheiro. Pede à Jesus que faça alguma coisa para salvar o convento e seus amigos. Marcelino tinha um coração grandioso e a sua áurea brilhava com uma intensidade indescritível. E Jesus Cristo, de fato, interferiu operando um milagre. O final, contudo, é muito triste e comoventemente enternecedor. Devo agradecer ao Altíssimo, por ter encontrado, ao acaso, esta fita. Nem imaginava que ainda sobrevivesse, tantos e não sei quantos janeiros depois. 

Pensei em mamãe. Sem dúvida alguma, a minha genitora, irá gostar de saber (de onde estiver), que uma de suas poucas besteiras (vamos colocar assim) dedicadas a mim (naquele tempo, era difícil a vida, ela ganhava uma miséria como balconista de um bar perto do antigo e extinto Mappin, centro de São Paulo) ainda, em pleno século vinte, se é possível achar disponível, numa locadora repletada de ultrapassados obsoletos, algo aproveitável e, como eu, certamente recordará do distante passado, de quando precisou deixar a capital dos paulistas e se mudar para o Rio de Janeiro, indo residir na rua Raimundo Correia (travessa da Nossa Senhora de Copacabana), numa quitinete que mal cabiam as suas coisas de uso pessoal. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo, 18-9-2020

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4 comentários:

  1. MARCELINO PÃO E VINHO

    https://www.youtube.com/watch?v=JcmhTZN_pfE

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  2. Bons filmes, como ‘Marcelino Pão e Vinho’, citado no texto de Aparecido Raimundo de Souza, nos fazem recordar momentos agradáveis da vida. Momentos que não voltam mais, momentos que ficaram esquecidos no para sempre, porque hoje em dia, as coisas tidas como excelentes se quedaram esquecidas. Em nosso mundinho atual, as pessoas se preocupam mais em ficarem coladas nos seus aparelhos celulares jogando joguinhos idiotas ou falando da vida alheia. Lado outro, ouvindo músicas idiotas, de cantores medíocres, quando ninguém mais se lembra de Angela Maria, Roberta Miranda (papai adorava Roberta Miranda, Cauby Peixoto, Cascatinha&Inhana... Lembro que eu ainda era uma menina e mamãe falava de num filme que fora ver no cinema com papai. ‘Suplício de uma saudade’, com William Holdem e Jennifer Jones. Willian era o jornalista Mark Elliot e Jennifer, a médica Suyin. Eles se apaixonam e a história termina tragicamente com a morte dele. O amor do casal era tão puro e bonito, que, mesmo após seu falecimento, ela, Suyin, voltando ao local onde eles costumavam se encontrar, ela o vê à sua espera, sorrindo, de braços abertos, embaixo de uma árvore frondosa, o recanto onde os dois elegeram para celebrar a paixão que os alimentava a alma. Hoje só vemos sexo na televisão. As emissoras tidas como ‘donas do pedaço’, nos ensinam a trair, a matar, a roubar... Assistimos a programas fúteis, vazios, sem conteúdo, onde a maioria dos apresentadores perdem um tempo enorme com banalidades, promovendo lixos e um amontoado de excrementos e dejetos, badalhocas e desrespeitos, quando bem poderiam melhor usarem seus espaços para cultivarem boas coisas e colocar em nossas casas, em nossos lares, programas instrutivos, onde não passássemos vergonha em sentarmos com nossos pais, avós e filhos. Obras primas como ‘Marcelino Pão e Vinho’, do escritor José Maria Sánches, ‘Suplício de Uma Saudade’, de Rosalie Matilda Chow, que assinava seus trabalhos como Han Suyin, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna e outros mais, não têm valor em nossa vida cotidiana. Prevalece a degenerescência do caráter, sempre. O que é bonito e lindo de se ver... Kikikikikiki... Passa longe, a léguas de distância.
    Carina Bratt
    Ca
    De Vila Velha no Espírito Santo ES

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  3. Adoro confrontar Carina.
    Acho que ver filmes velhos de novo nada tem a ver com carácter.
    Todos depende de gosto.
    Não gosto e até detesto qualquer filme brasileiro.
    Aliás o único filme que gostei foi "Rosinha minha canoa".
    Tenho a NETFLIX que é uma bosta cheia de séries inacabadas.
    TV aberta só assisto a fórmula um.
    Futebol somente vejo futebol inglês e espanhol, a corrupção grassa no brasileiro.
    Pouca coisa me leva às lágrimas.
    A dama de vermelho, Uma linda mulher e Perfume de mulher são os únicos que tenho em DVD.
    Não gosto de sertanejo, adoro música de raiz.
    Minha música preferida é amigos para sempre.
    Cantor pela voz: https://youtu.be/equmsMJsPMQ Eros Ramazzoti
    Coletânea Andrea Bocelli: https://www.vagalume.com.br/andrea-bocelli/

    Quem lê o livro vê que os filmes não passam perto.
    A melhor música: https://youtu.be/SWtjTkixv5M
    Você nunca ouviu Nelson Gonçalves, Jamelão e Lupicínio Rodrigues são essas coisas eternas que fazem falta.

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