Helena Matos
Na prática temos dois países. E o que no
país Estado muitas vezes se chama arrojo e ambição no mundo do não Estado
designa-se como trafulhice ou, numa versão mais bondosa, erro grosseiro.
Enquanto andamos entretidos
com a oposição direita-esquerda aumenta sim a fractura entre os dois países: o
primeiro país, o do Estado, que vive no Estado e ganha do Estado. E o outro
país, o das empresas, dos trabalhadores por conta própria e por conta doutrem.
Dir-me-ão que nenhum destes
países é melhor que o outro. Ao que eu até acrescento que não se conhece uma
democracia em que estes dois países não coexistam. Pois, mas nós temos um
problema: o país do Estado cresceu de tal forma, tornou-se de tal forma voraz
na sua procura de recursos e está de tal forma blindado nos seus garantismos
que compromete todos os equilíbrios em que o regime assenta.
O endividamento é apenas uma das
faces dessa desmesura de um Estado cujas corporações não só legislaram e
legislam em proveito próprio como fazem acreditar que basta legislar para que a
realidade aconteça. Que basta declarar uma despesa como não tendo impacto
orçamental para que ela desapareça. Que se o primeiro-ministro anunciar que se
vai “virar a página da austeridade” o dinheiro aparece.
Aliás por trás do próprio
conceito de austeridade o que temos tido é sobretudo um clamor dos mais
privilegiados da máquina estatal contra a tentativa de lhe cortarem
rendimentos, poder e privilégios. Não só no sector privado os cortes chegaram
muito antes da austeridade se ter tornado notícia – estavam os funcionários
públicos a ser aumentados 2,9 em 2009 e já no sector privado se baixavam
vencimentos e cortava nas despesas – como o tão apregoado slogan do ataque aos
serviços públicos nada tem a ver com o acesso dos utentes a esses serviços mas
sim com os vencimentos e garantismos de quem lá trabalha.
Assim, durante o
mediaticamente apregoado ataque ao SNS pelas medidas de austeridade, não
diminuiu o acesso dos utentes às consultas. Já essa alínea do virar da página
da austeridade que implica a reposição das 35 horas na função pública levará a
que tenham de se desviar verbas no orçamento da saúde para pagar horas
extraordinárias. Mas claro que na retórica das corporações do sector isso não é
um ataque ao SNS. É sim defendê-lo.
Na prática temos dois países.
E o que no país Estado muitas vezes se chama arrojo e ambição no mundo do não
Estado designa-se como trafulhice ou, numa versão mais bondosa, erro grosseiro.
Veja-se, por exemplo, esse
pilar do regime a que as empresas e os trabalhadores entregam uma parte dos
seus rendimentos. Falo da Segurança Social, naturalmente. As contas da
sustentabilidade da Segurança Social apoiam-se em cenários de crescimento da
economia (logo crescimento também das receitas) invariavelmente destruídos pela
realidade. Mas mesmo que esses radiosos cenários se cumprissem seriam
manifestamente insuficientes por causa da demografia: cada vez há menos activos
(contribuintes) e mais pensionistas (recebedores).
Em conclusão, se a Segurança
Social fosse privada falia e com mais ou menos estrondo alguns dos que
afiançaram pela saúde das suas contas acabariam em tribunal. Como é estatatal
vai falindo. Em silêncio, obviamente. Por outras palavras vão-se aumentando os
impostos para a financiar e vão-se avisando as gerações futuras que as suas
reformas serão pouco mais que simbólicas. No outro mundo, o do não Estado, a
isto chama-se fraude, não é?
Mas entretanto, claro, há que
continuar a descontar, porque nessa matéria – a da captação de receitas – o
país do Estado não só é inflexível como se rege por legislação que não se
admite em qualquer outro sector. Por exemplo, a colocação de câmaras de
vigilância para prevenção de assaltos levanta as maiores reservas à Comissão
Nacional de Protecção de Dados. Contudo não suscitou qualquer problema à mesma
comissão a criação de listas de devedores ao fisco e à segurança social. Mais,
essas listas, se o credor for o Estado, são não só legais como valorizadas como
instrumentos de combate à evasão fiscal. Já no outro país, o do não Estado, a
existência de uma lista de devedores – por exemplo a muito referida lista de
inquilinos incumpridores reincidentes – é vista como uma grave atentado aos
direitos dos cidadãos.
Esta duplicidade de critérios
tem vindo a crescer e tudo indica que crescerá na exacta medida em que o
Estado, na sua ânsia de dinheiro, vier a aumentar o seu intervencionismo nas
empresas. Assim, no mesmo país que não admite a figura do agente provocador nas
operações policiais, nomeadamente nas de combate à droga (porque o agente
provocador incentiva ele mesmo uma situação ilícita com toda a ambiguidade
ética que tal implica), veio agora a Autoridade para as Condições do Trabalho
reivindicar a colocação de inspectores camuflados nas entrevistas de emprego.
Objectivo: detectar os casos em que as entidades empregadoras não respeitam a
lei. Enfim entre perseguir traficantes ou empregadores o país Estado não
hesita.
Aliás tudo o que permita
seguir o rasto do dinheiro permite desbloquear rapidamente legislação. E assim
chegamos ao paradoxo de Portugal, cujos serviços de informações não podem fazer
escutas e nem sequer ter acesso a dados de internet (donde a prevenção do
terrorismo ser entre nós uma história de encantar!), se apressar a adoptar as
medidas necessárias para que sejam fiscalizadas as transferências bancárias
superiores a mil euros.
Portanto rezemos aos céus para
que os terroristas em Portugal transfiram 1001 euros para as contas uns dos
outros porque se se limitarem a combinar pelo telefone todos os detalhes da
colocação de bombas ninguém os incomodará.
Nada disto começou com este governo
mas este governo é a expressão já sem qualquer pudor ou filtro de tudo o que a
corporação Estado está disposta a fazer para manter os seus privilégios,
aumentar o seu poder e fazer crescer os seus territórios.
Medidas aparentemente sem
qualquer racionalidade tornam-se claras quando enquadradas nesta estratégia.
Desde as mudanças na Educação à reversão dos processos de privatização das
empresas públicas de transportes estamos sempre perante o mesmo objectivo:
reforçar, proteger e blindar as corporações do sector Estado.
O próximo passo será fazer
crescer ainda mais as diversas camadas da administração. Como? Avançando com a
regionalização na secretaria. É certo que os portugueses chumbaram a
regionalização em referendo mas isso não é obstáculo. A regionalização permite
a criação de várias estruturas intermédias de poder, território de expansão e
implantação por excelência das nomenclaturas partidárias e corporativas.
Sob a retórica de “a
descentralização ser a base da reforma do Estado”, o Governo pretende que os
eleitores das áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa elejam os respectivos
presidentes. Depois claro haverá que alargar essa iniciativa a todo o país,
depois aprofundá-la, depois…. está feito.
A pressão para que o outro
país assegure as receitas indispensáveis ao funcionamento do país Estado vai
levar necessariamente ao agigantar das contas de somar e imaginar sobre o muito
dinheiro que os muito ricos não pagam ao fisco. Vamos ter também os arroubos
patrioteiros contra os mesmos a quem se pede cada vez mais dinheiro ou mais
tempo para pagar o que se deve que é o mesmo que pedir mais dinheiro. E claro
vamos tentar sobreviver no populismo inerente à concepção do acto de governar
com a de um grande arrecadador/distribuidor, imagem sempre eficaz na hora de
ganhar votos.
Moral da História: para o
primeiro país, o do Estado, não há meios que cheguem. Já para o segundo restam
cada vez mais apenas duas alternativas: conseguir anichar-se no Estado ou
ludibriá-lo.
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