João Marques de Almeida
A esquerda nacional recusa-se a
reformar o Estado porque ela é, em grande medida, o Estado. Por isso o governo
protege os privilégios dos seus. Não defende o “Estado social”, mas o “Estado
clientelar”
A oposição direita-esquerda
tornou-se secundária. O que não significa que seja irrelevante. As duas
famílias políticas são obviamente diferentes. As diferenças resultam de
percursos históricos distintos e formam identidades políticas que não se
confundem. Não foi a irrelevância que tornou a oposição secundária, mas sim a
emergência de outras diferenças políticas, neste momento, mais relevantes; e
decisivas para o nosso futuro, sobretudo na Europa.
A dimensão do Estado, antes de
mais na vida económica de uma sociedade, constitui a primeira oposição que
define os nossos dias. A realidade, a experiência, os números (chamem-lhe o que
quiserem) mostram que em muitos países europeus o Estado é insustentável. Por
exemplo, no caso de Portugal, a dívida pública nunca parou de crescer durante
os últimos vinte anos. O mesmo se passou com muitos outros países europeus.
Governos de direita e de esquerda contribuíram para esse endividamento
generalizado.
Em vários países europeus,
tanto a direita como a esquerda reconheceram a realidade e têm procurado
emagrecer o Estado, tornando os serviços públicos mais eficazes e convidando a
iniciativa privada a contribuir directamente para o interesse público. É o que
tem acontecido nos países do norte da Europa durante os últimos quinze anos.
Tendo em conta o que se passa em Portugal, é importante sublinhar que vários
partidos de esquerda estiveram ou estão empenhados em reformar o Estado (desde
o “New Labour” até ao SPD alemão e aos partidos socialistas da Holanda e dos
países escandinavos). Ou seja, a necessidade de reformar e reduzir o peso do
Estado nas economias não é uma questão de posicionamento político. Tanto a
direita como a esquerda sabem fazer contas, como demonstram vários exemplos
europeus.
Tragicamente para os portugueses,
apesar dos números (e o PS conhece-os tão bem como o PSD e o CDS), a esquerda
recusa-se a adoptar as políticas correctas, como mostra o actual governo. E tem
pouco a ver com a ideologia, como se vê com muitas outras esquerdas europeias.
A esquerda nacional recusa-se a reformar o Estado porque ela é, em grande
medida, o “Estado”. Por isso, o governo protege os interesses e os privilégios
dos seus. O que está em causa não é a defesa do “Estado social”, mas sim de um
“Estado clientelar”. Pior: neste momento passou a ser necessário satisfazer
três clientelas. Não são as ideias que explicam a recusa reformista das
esquerdas portuguesas. São os interesses e o poder das suas clientelas.
O resultado é profundamente
injusto. Para manter os privilégios de alguns – nos salários, nas pensões e na
segurança do emprego – cria-se uma sociedade desigual. Nesse sentido, o “Estado
clientelar” é inimigo do “Estado social”. É lamentável que o PS tenha traído os
seus valores de igualdade e de justiça social para preservar o poder de alguns.
A segunda oposição é entre um
“nacionalismo anti-europeu” e um “patriotismo europeísta”. Há cada vez mais
sinais que este governo se prepara para adoptar uma linha “anti-europeísta”. O
que significa, desde logo, uma traição à história do PS. Quando observo António
Costa, lembro-me frequentemente do que John Stuart Mill disse um dia sobre o
seu Pai, James Mill: “O meu Pai amava a humanidade em geral, mas detestava cada
pessoa em particular”. No plano abstracto, Costa gosta muito de dizer que “o PS
é o partido mais europeísta de Portugal”. Mas depois passa a vida a atacar a
“Europa”, em particular a Comissão Europeia. Ele e os seus já acusaram Bruxelas
de ser responsável pelos impostos, pelo défice, por um menor crescimento
económico e ainda vão culpá-la pelo aumento do desemprego.
Mas o PS foi ainda mais longe
e acusa a Comissão de estar dominada pela direita europeia (de tal modo que
aparentemente faz agora o que o PSD e o CDS querem; depois do PS ter passado
quatro anos a acusar o governo de Passos Coelho e de Portas de fazer o que
Bruxelas queria). Se a Comissão tem um Presidente e uma maioria de comissários
de direita é apenas por vontade dos cidadãos europeus: desde 2004 que a direita
europeia ganha as eleições europeias. A Comissão reflecte isso: a vontade dos
eleitores. Mas apesar da realidade eleitoral, o colégio de comissários
constitui uma grande coligação entre as famílias políticas europeístas, onde os
socialistas têm influência.
Não são as ideias de esquerda
que explicam a deriva nacionalista e anti-europeia do governo. O que explica é,
mais uma vez, a vontade de chegar ao poder a qualquer custo. Para se tornar PM,
Costa fez um pacto com os partidos anti-europeus. O preço poderá ser a
transformação do PS num partido que combate a Europa para manter uma aliança
com o PCP e o BE. Quem diria em 1975 que isto poderia um dia acontecer?
Em toda a Europa, hoje, as
grandes questões são a reforma do Estado de modo a controlar a dívida pública e
a posição em relação à Europa. Em muitos dos países europeus, partidos de
esquerda estão empenhados em reformar o Estado e recusam-se a usar argumentos
populistas e nacionalistas contra a Europa. Para chegar ao poder, o PS
abandonou a sua família política. Juntou-se aos populistas anti-europeus e juntos
tudo farão para impedir qualquer reforma do Estado. Portugal tem no poder uma
coligação reacionária e populista. Isto não tem nada a ver com a esquerda
socialista democrática. E não tinha que ser assim. Espera-se que um dia o PS
mude. Seria mau para Portugal se o reformismo e o europeísmo passassem a ser um
exclusivo da direita.
Título e Texto: João Marques de Almeida, Observador,
13-2-2016
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