João César das Neves
O navio da economia portuguesa
chocou com um icebergue em 2008. Há anos que eram evidentes os perigos de
navegar em águas de endividamento, coalhadas de credores gélidos, mas até ao
desastre ninguém no país parecia dar atenção. Aliás, mesmo após o choque, que
arrombou o casco em mais de 10%, o capitão andou dois anos a dizer que o
problema era controlável. Só em abril de 2011, com o navio já adornado, se
assumiu a emergência.
Nessa altura o afundamento
estava iminente. Foi preciso ligar a embarcação a um enorme flutuador de 78 mil
milhões e instalar bombas potentíssimas para começar a extrair a imensa
quantidade de água que invadia as zonas inferiores. Mesmo com essa intervenção
desesperada, durante meses permaneceu o risco de a economia ficar encalhada, como
acontecia ao navio grego. A emergência exigiu largar muito lastro e alijar
carga. Muita gente perdeu a ocupação, pela submersão dos locais onde
trabalhava. Milhares de habitantes tiveram de ser deslocados para outros
navios, num processo de emigração que não se via há décadas. A nau portuguesa
enfrentou a maior crise desde a guerra.
Inicialmente a catástrofe
centrou todas as atenções, absorvidas no complexo e perigoso processo de tapar
o rombo e bombear a água. Apesar do sofrimento, a crise uniu os esforços
nacionais. Tripulantes e passageiros, sob enorme pressão, fizeram o que tinham
de fazer: suportaram cortes, perda de bagagem e apertos nas instalações,
enfrentaram desemprego, evacuação, ferimentos e os inúmeros encargos
necessários à salvação do navio. Naturalmente houve queixas e protestos, mas
foram poucos, esparsos e moderados. A unidade nacional, mesmo renitente, foi
notável.
Ao fim de três anos foi
possível retirar o flutuador, pois o navio, ainda com um rombo de mais de 4%, o
dobro do previsto, já se conseguia aguentar sem apoios. Mas os problemas
continuavam assustadores, mesmo com as taxas de juro na região geladas pela
política do BCE. Não só a brecha exterior permanecia como o embate no icebergue
criara outras rachas na estrutura do navio, que o tempo viria a revelar. Dias
após a retirada do flutuador, cedeu um dos vaus centrais da embarcação,
conhecido como BES, o que reabriu o rasgão no casco e implicou novas
fatalidades. Certas partes da carcaça ameaçavam ruptura, forçando até uma
intervenção na viga do Banif.
Um outro problema, menos
visível, era ainda mais assustador. Devido à necessidade de deslocar
passageiros das zonas alagadas, os tanques de combustível começaram a ser
usados como camarotes. De facto, para aliviar o peso sem largar carga, muito
combustível fora deitado ao mar. Assim a mistura de poupança e investimento que
impulsionava a embarcação viu-se reduzida a níveis críticos, o que permitia
pouco mais do que navegação de cabotagem.
A fragilidade do navio era tal
que a menor tempestade seria fatal. E as nuvens negras acumulavam-se na
região... Apesar disso, a retirada do flutuador mudou a atitude e minou a
unidade anterior. Cada vez mais dominava a voz daquela elite que inicialmente
negara o rombo e depois conseguira, com a sua oposição, evitar várias das
medidas de ajustamento. Recusara sempre o alijamento de carga e cortes na
tripulação, protestando contra qualquer incómodo dos passageiros e até com o
ruído das bombas de água. O trabalho para tapar o rombo era considerado uma mera
imposição externa.
Este é o aspecto mais bizarro
dessa posição: como nunca atenderam ao buraco no casco, à falta de combustível,
rachas na estrutura e perigo de afundamento do navio, os sacrifícios
pareciam-lhes meros caprichos, impostos pelas regras da frota e totalmente
alheios ao interesse nacional. Por isso ficavam irritados quando se dizia que,
devido à brecha e ao peso da água, não existia alternativa à austeridade. Nunca
chegavam a explicar qual era, afinal, a sua opção credível e viável de flutuação,
mas enfurecia-os a afirmação de que o risco de afogamento não deixava escolhas.
Em 2015 essa elite conseguiu
controlar a escolha do novo capitão, prometendo acabar com a crise e retomar a
navegação de longo curso. As suas prioridades eram repor feriados, baixar
preços nos restaurantes, redecorar camarotes de funcionários e pensionistas e
fazer umas obras de beneficiação no convés. Precisamente nessa altura
aproximava-se uma terrível tempestade na região, que punha todos os navios de
sobreaviso. Mas, tal como em 2008, este capitão assegurava que o problema era
controlável. O importante é aumentar o consumo, reduzir os preços dos
restaurantes e retomar a festa.
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