terça-feira, 7 de março de 2017

Tudo há de correr bem, até acabar mal

Rui Ramos

Há quinze anos, desde que a crise orçamental começou em 2001-2002, que todas as épocas de bonança têm sido apenas a calma antes da próxima tempestade. Vai agora ser diferente?

Já não são só os situacionistas mais ferrenhos que estão encantados com a sorte do país: segundo o INE, é quase toda a gente. Como poderia ser de outra maneira? Leia-se a imprensa. Tudo está transfigurado: a emigração, que no tempo de Passos Coelho era uma imensa tragédia, é agora, com António Costa, uma espécie de programa Erasmus, muito interessante para os jovens.

Nada disto é surpreendente. Nos anos 70, 80 e 90, os portugueses habituaram-se a viver entre épocas de prosperidade e momentos de recessão. As recessões foram geralmente breves e deram lugar a períodos mais longos de crescimento económico. Bastava, para fazer a ponte, um temporário “aperto de cinto”. Por isso, desde que a crise de financiamento do Estado foi detectada, em 2001-2002, que estamos à espera da próxima maré de riqueza.

Em 2004, Santana Lopes foi o primeiro a decretar o fim dos “sacrifícios”. Em 2005, com José Sócrates, só o optimismo passou a ser permitido. Tirando o Dr. Medina Carreira e poucos mais, toda a gente fingiu não reparar que a taxa de crescimento da economia portuguesa era a mais baixa da Europa, num mundo de economias que cresciam como nunca. A dívida começou então, graças ao euro, a compensar a anemia portuguesa: de 2001 a 2008, duplicou.

O país pôde assim permitir-se a maior dose de irrealidade da sua história. Em 2008, quando começou a grande recessão, Sócrates decidiu que Portugal era um “oásis”. Tudo ruía lá fora. Aqui, planeavam-se aeroportos, comboios de alta-velocidade, mais autoestradas. Em 2009, os funcionários públicos obtiveram o maior aumento deste século, e Sócrates ganhou as eleições. Portugal não era a Grécia. A banca portuguesa era a mais sólida da Europa. De repente, aterrou a troika. Porquê, se tudo estava a correr tão bem? Segundo Sócrates, só para derrubarem o governo.

Agora, tudo está ainda melhor. O PCP e o BE, outrora partidos antissistema, apoiam o sistema. Louçã está conselheiro. Não há “populistas”. O presidente da república é o fã número um do governo. Os bancos foram salvos. Os turistas têm calçadas novas em Lisboa. Nos estúdios das televisões, vagas sucessivas de comentadores ajoelham diante da “habilidade” de Costa. O que falta para a felicidade total? Pouca coisa, talvez uns dois ou três extermínios (Carlos Costa, Teodora Cardoso e, já agora, Passos Coelho).

No meio desta harmonia universal, é preciso má vontade para lembrar que o défice foi obtido com medidas extraordinárias e temporárias, e com base na maior despesa pública e na maior carga fiscal de todos os tempos. Que a economia cresceu menos do que em 2015, e cerca de metade da economia de Espanha, aqui ao lado. Que a dívida continua a aumentar e que sem o BCE ninguém a compraria, a não ser a juros impossíveis.

Como diria Pirro, mais um brilharete orçamental destes, e estamos perdidos. Mas num país envelhecido, em que todas as mudanças suscitam desconfiança e medo, que fazer? Caímos num impasse duplo: num impasse político, porque os partidos europeístas estão divididos, e o governo assenta numa maioria que recusa reformas; e num impasse económico, porque a carga fiscal não pode diminuir, pelo risco de perder o financiamento do BCE, e a alocação de recursos também não, pelo perigo de descontentar as clientelas com que se tem boa opinião e ganham eleições.

O país está assim completamente dependente das políticas monetárias europeias. Acontece que essas políticas estão a ser contestadas em toda a Europa do Norte. O que nos resta? Talvez acreditar que Angel Merkel sobrevive e vai continuar a aceitar-nos os défices. E no fim? No fim, vamos provavelmente dizer que os malandros da “direita radical” arranjaram uma crise para deitar abaixo António Costa. Porque, claro, tudo estava a correr muito bem.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 7-3-2017

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