terça-feira, 30 de julho de 2019

Onde há Trump, ataca-se; onde não há, inventa-se

Rui Ramos

A moda de comparar qualquer líder da direita com Trump, e Trump com o diabo, é uma complacência niilista que impede o debate político e tornará o público indiferente a um verdadeiro diabo.

A recepção mediática ao novo primeiro-ministro inglês tem sido um dos espetáculos mais bizarros dos últimos anos. Lewis Carroll não teria conseguido imaginar nada de mais absurdo.

Boris Johnson [foto] tem um diploma em Estudos Clássicos por uma das melhores universidades do mundo? É um bronco analfabeto. Boris Johnson formou o governo etnicamente mais diverso da história do Reino Unido, com filhos de imigrantes (Priti Patel e Savid Javid) em dois dos ministérios mais importantes? É racista. Boris Johnson prometeu garantir os direitos dos cidadãos da UE no Reino Unido após o Brexit? É xenófobo. Boris Johnson anunciou grandes investimentos nos serviços públicos? Vai destruir o Estado social.


Podia continuar, mas não vale a pena. Já devem ter percebido a ideia: Boris Johnson tem de ser bronco, racista, homofóbico, machista, e fascista, custe o que custar à realidade. Têm essas imputações alguma coisa a ver com o que o homem é, disse, fez ou vai fazer? Não. Boris Johnson é tudo isso, apenas porque os seus inimigos julgam que lhes convém atacá-lo segundo a cartilha com que Trump ou Bolsonaro são atacados nos EUA e no Brasil, independentemente de quaisquer factos.

Estou a dizer que Boris Johnson deveria ter sido recebido como o Messias em Jerusalém? É claro que não. Johnson é líder do Partido Conservador e primeiro-ministro de um governo que promete cumprir a vontade dos cidadãos do Reino Unido expressa no referendo sobre a União Europeia.

É natural que não fosse abençoado pela esquerda ou pelos adeptos da opção rejeitada em 2016.

Mas o modo como o atacam é interessante. Há trinta anos, este antigo aluno de Eton e de Oxford, capaz de citar de cor poemas em grego antigo e em latim, teria sido denunciado ao proletariado das fábricas e das minas como mais um esnobe. Agora, porém, parece que o que convém é o contrário: assustar as elites metropolitanas da era do iPhone e do Starbucks com a ideia de que vem aí um Espártaco, rude e sanguinário, à frente da plebe excitada pelo Brexit.

Quando, curiosamente, Boris ainda era, há uns dez anos, o único conservador popular entre essas elites metropolitanas, que então o achavam culto e divertido. Por isso, aliás, foi eleito e reeleito mayor de Londres.

Quero sugerir que a imprensa está a ser injusta, por que Boris Johnson é impecável e vai resolver tudo? Também não. Johnson não é obviamente São Francisco de Assis, porque senão nunca teria chegado a primeiro-ministro. Os seus pecados e extravagâncias, porém, não são mais relevantes do que os de grandes primeiros-ministros do passado, como Disraeli ou Churchill.

Provavelmente, enfrentará a mesma via sacra de Theresa May, e pela mesma razão: a tentação das facções parlamentares britânicas de usarem o processo do Brexit para mudarem de primeiros-ministros. Mas a atual moda de comparar qualquer líder da direita com Trump (para grande divertimento do presidente americano), e de identificar Trump com o diabo, é uma complacência niilista. Parece que à medida em que estão em causa coisas fundamentais – no caso do Reino Unido, a relação com a UE — , mais o debate político deixa de ter qualquer relação com a realidade, e passa a desenrolar-se a um nível de fantasia apocalíptica, onde os protagonistas de que não gostamos têm por força de ser uma mistura de Hitler com um palhaço.

Há dois riscos aqui. O primeiro é o da dificuldade de debater racionalmente, quando a democracia – é bom lembrar – pressupõe o debate, isto é, que é possível acreditar e querer sem deixar de ser lúcido e justo. O segundo é tão mau como esse: de tanto vermos lobos em todo o lado, tornarmo-nos indiferentes aos verdadeiros lobos.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 26-7-2019

Um comentário:

  1. Quando eu vejo escrito a palavra democracia, sinto que as pessoas não buscam a história, para reaver seu verdadeiro sentido.
    Na antiga Atenas havia artistas, artesãos, lavradores, enfim pessoas que tinham atividades para os outros. Quando um destes sofria um acidente, estava condenado a viver de esmolas, de ser um problema pra as famílias, aquele trambolho que hoje o mundo democrático chama de "especiais.
    Por isso criaram um sistema de impostos pago pelos que produziam para sustentar os impossibilitados nas suas velhices e doenças incapacitantes.
    Essa previdência era a DEMOCRACIA dos atenienses.
    Hoje no século XXI as pessoas criaram o conceito de que liberdade é a verdadeira democracia.
    Mentem para si mesmos.
    Os Atenienses escravizavam outros povos, tinham leis severas para crimes entre os cidadãos.
    Eram livres.
    Podiam dizer o que quisessem sem cometer injúrias e falsos testemunhos.
    Diferente do hoje, onde não podemos calar as injúrias e os falsos testemunhos porque ferimos a democracia.
    Quando falam de aumentar impostos, eu raciocino que ao pobre é que vais pagá-los, o produtor aumenta os produtos, o empresário recebe em dinheiro ao vivo, muitos retiram seus "pró labore" em dinheiros reais, sem pagar os impostos, depositam em aplicações sem impostos, e como nababos reais coletam dos mais necessitados.
    Acredito que no mínimo 50 milhões de brasileiros podiam contribuir com 30,00 reais por mês para ajudar o governo na saúde, na educação e na DEMOCRACIA.
    Isso daria cerca de 2 bilhões ao ano.
    O consumo de cigarros arrecada 300 milhões de impostos por dia.
    O problema maior do Brasil é ter mais funcionários públicos do que necessita.
    Se o tal de COAF agisse corretamente muitos estariam na corda bamba da falsidade ideológica.
    Nós fomos descontados em folha para um instituto de DEMOCRACIA, FOMOS ROUBADOS E ESPOLIADOS, e esperamos mais de 20 anos para que um sistema de juízes SUPREMOS, garantisse a nossa LIBERDADE.
    Todos nós deveríamos contribuir para a previdência, mesmo aposentados para refletir verdadeiramente o sentido da DEMOCRACIA ATENIENSE.
    DEMOCRACIA não admite debate.
    fui...

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