Amigas, pensem num ser humano, quero dizer, imaginem um ser ‘umano’ arrogante e chato, nojento e
ascoso, enodado e mal amado, metido à besta e mentiroso. Pensaram, ou melhor,
fantasiaram? Legal! Saibam todas que conheço um pior do que esses que vocês
mentalizaram. Estou falando, não outro, senão do Anestino, proprietário do
apartamento onde moro de aluguel. Mais ignóbil e repulsivo que ele, mais
encardido e embostelado, acredito, piamente, não exista protótipo na face da
terra que se assemelhe, ou lhe chegue aos calcanhares.
O cara é tão sem noção, tão noiado e fora do prumo, tão sebento e abjeto,
que perturba a si mesmo, a ponto de, ao se olhar no espelho de sua alma, sair
correndo, em desabalada carreira, imaginando ter visto, no reflexo de sua
própria cavalgadura, o capeta em forma de verme peçonhento. Sequer desconhece,
o cidadão, ou tem consciência de que é ele, sem tirar nem pôr, ‘a coisa do
coisa ruim’ -, como classificaria Danuza Leão -, na sua melhor forma de
descrever certas fortuitidades.
Partindo desse princípio, Anestino é um criador de casos feitos nas
medidas certas, em horas incertas, diga-se de passagem. Barraqueiro,
encrenqueiro e flibusteiro, chegou aqui, parou. Senhor de espírito irrequieto e
convulsivo, frenético e proceloso, presumo que só descanse das suas loucuras
tenebrosas quando está perturbando o sossego ou a paz de alguém. Percebam,
caras amigas, que até o nome da criatura causa espanto e horrores aos ouvidos.
Só de pronunciar, o ‘anestino’ do Anestino, a gente se ‘anestina’ e sente uma
vontade louca de vomitar as tripas.
O infeliz lembra um sujeito de sangue árdego, preso aquela impetuosidade
que chamamos de ‘sem limites’. Facílimo de ser irritado, igualmente esfuma, ou
agasta quem dele se aproxima. Além de possuir a alma negra e custosa, o vassalo
se mostra abespinhado e furibundo, irritadiço e irascível aos que dele precisam
se fazer próximos por questões as mais diversas (seja para travar negócios ou
somente por razões pueris e triviais),
deixando a perceber, logo de primeira, se tratar de um enfezado de mão cheia.
Um inflamado -, eu acrescentaria por conta -, um boçal sem causa,
variante de alguma doença mental esquizofrenizada. Dito de forma mais
abrangente: Anestino é, sem dúvida alguma, um paranoico psicologicamente disturbado.
Vivalma aqui no prédio gosta dele. Todos os moradores têm alguma queixa
enrustida, por menor que seja, um libelo engasgado a reclamar de sua
personalidade fúbia. Aliás, amigas, acreditem, o protagonista aqui citado, se
colocarmos as suas mazelas na balança do dia a dia, chegaremos à conclusão de
que nem ele gosta de ‘se aturar a si mesmo’. No geral, um piolho, ‘mala sem
alça’.
Em verdade, Anestino se odeia. Não se persevera, não se deixa ser levado
pelo bom senso. Personagem imastigável, incomível, insondável e impenetrável.
Compra a sua fuça chuviscosa, quem não o conhece. Euzinha mesma tenho vontade
de voar em seu pescoço quando, por exemplo, careço me entrevistar com ele para
pagar o aluguel mensal e repassar a grana da energia elétrica. Homem de duas
palavras, faz a gente trazer à memória aqueles antigos senhores, donos de
terras, que por terem algum patrimônio, se achavam soberanos do mundo e não só
do mundo, das pessoas e coisas com a mesma intensidade pacóvia.
Contador de lorotas, afirma possuir treze apartamentos alugados aqui
dentro do condomínio. O mais incrível: está sempre duro, os bolsos vazios,
precisando de dinheiro. Começo de mês, pinta na porta aqui de casa, como um
cobrador de impostos dos idos medievais. Isto quando não liga ameaçando. Se por
algum motivo (ainda que justificável) um de seus supostos treze inquilinos
postergarem ou encompridarem o ‘não pagamento de alguma taxa faltosa’, tal
brecha se consubstanciará no fio condutor mais que suficiente para se criar
trocentas celeumas. Em grosso expressar, a gota d'água para transbordar o copo
e contribuir, de forma acentuada, para que o asqueroso se ache no direito de
sair dos seus conformes e partir para cima, como um animal desembestadamente
feroz.
Meu patrão, por algumas vezes, se desentendeu feio com ele, além de
mandá-lo para os quintos do inferno e pior, a tomar no centro do pescoço em
francês. Acho que, igualmente, em chinês, em vista do país de Jackie Chan estar
tão em moda desde o começo do ano. Anestino (nomezinho desgraçado, este,
concordam?) não passa de um pobre destrambelhado, um metadeado que não se
completou. Vela apagada que não se achou enfiado no buraco do castiçal, ou que
não topou com seu verdadeiro sentido e lugar no mundo.
Vejo a sua fisionomia destroçada, como a de um homem faltando algumas
peças importantes. Um ser truncado, tosco, mutilado, espectro que perdeu a cor
da esperança, que se distanciou da alegria de respirar. Uma coisa sem moral ou
decência, que não aprendeu a ser um pouco mais maleável e tranquilo. Anestino,
me lembra Plutarco. Esse filósofo e historiador grego, certa vez, ao tentar
colocar um cadáver em pé, e após arriscar e ‘desarriscar' de várias formas e
maneiras, concluiu que ‘faltava alguma coisa dentro’.
Penso, com meus botões, ser o caso do meu senhorio. Uma estrutura inerte
que perdeu o seu conteúdo, o sopro pleno, o alento maior, e, por conta de sua
infelicidade de ser oco e vago, bem ainda desabitado e devoluto, esvaziado e
fantasmagoricado, ou fantasmagoriado, se empenhe, tenazmente, de unhas e
dentes, no cotidiano da sua mediocridade, em se colocar em pé. Não consegue.
Obviamente, queridas amigas e leitoras... Ao senhor Anestino lhe falta o
sustentáculo, ou seja, o combustível mais sublime da existência: lhe falta a
vida.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Vila Velha, no Espírito
Santo, 13-9-2020
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Todos nós de alguma forma temos um Anestino atrapalhando nosso caminho. São como pragas.
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