domingo, 30 de agosto de 2020

[As danações de Carina] Na solidão da quarentena, descobri ter sérios poemas mentais

Carina Bratt

HOMEM LINDO E MARAVILHOSO, tu que te aproximas de mim, não queiras saber como me chamo. Para ti, sou a sem rosto, a sem vida, cadáver ambulante de um cemitério inexistente: meu nome? Não posso dizê-lo, nem poderias pronunciá-lo.

Nessa angústia de ser coisa nenhuma,
Onde o silêncio é canto e luz na alma,
vivo de rememorar o ocaso dos meus ontens.

Sabia que um dia tu virias de longe. Estava escrito que uma cidade grande e enorme te enviaria e eu te esperava. Com a ansiedade louca da terra (que em meu pensamento de trevas aguarda a claridade salvadora do sol), assim te esperei. E agora que estás aqui, creia-me, não te conheço. Procuro me aproximar de ti, estendo a mão para te tocar e apenas um vazio imensurável, quase abissal se perde ao redor de mim.


Tua pele, percebo, é limpa e me queima. Não sei resistir à dor intensíssima do contato. Não me fales, não me olhes. Tuas palavras me aturdem e teu olhar se crava, intolerável, em meus olhos. Tu me despes de todos os andrajos e me envergonhas de loucuras jamais vistas e sentidas. 

Ontem respirei uma eternidade congelada num instante
e fui abduzida
sorvida
para dentro de um mundo de vidro
que reflete
até lá – no infinito –
o que sempre quis:
voltar pra dentro do corpo onde nasci.

Espere. Calma. Não te afastes. Minha proximidade me asfixia, ao tempo em que muita distância me mata. Vejo teu cabelo ondular do outro lado do cristal, num emaranhado que flutua, e ao fazê-lo, ocupa seu lado do espaço. Teu corpo incompreensível me apavora, fujo de tuas mãos que querem me agarrar, me tocar, me comer em pequenos toques suaves, entretanto a névoa adocicada  do teu corpo me chama, bondosa, me convida a  sair do frio e a me fundir na música de festa  que vem do teu cheiro, do teu gosto.

Teu cabelo ao sopro da brisa que passa, não me assusta porque é excrescência, já saiu de ti e não te pertence, me acompanha, mas não me aprisiona, me roça, mas não me queima. Toco teu cabelo e não sinto dor.

Quando ficamos lado a lado em mansuetude – e de repente
correm teus olhos aflitos a distinguir a cor do vento
ou de toda natureza o próximo gemido
percebo que ao escolher fui escolhida – e ao te mirar
vejo a mim mesma em teu sorriso – mas rediviva.

Não insistas em saber como me chamo. Talvez eu não tenha nome, e se o tiver, é múltiplo e mutante. Meu apelido, meus patronímicos: fugazes, equívocos, carregados de ressonâncias. Em teu mundo não há ouvidos que captem sua frequência, nem tímpanos que não se arrebentem com a sua voz.

Talvez por isso sinta o irreversível
na ébria convivência das lembranças
que por ti e só por ti, solfejam quimeras sem eco.

Não queiras me falar: tuas palavras são ruídos. Chegam a mim fragmentadas. São cacos afiados de um vidro quebrado. Me ferem, me fazem sangrar e nada me dizem. Não tentes me amar:  teu amor me destrói. Não pretendas que eu te ame: não sou daqui, não estou aqui; tento chegar e não posso. Tua presença me atormenta: pesa demais, tua força quebra minhas asas; e como uma espécie de Ícaro pela metade; teu calor derrete as asas dos meus medos.

Teu cabelo, em troca, me recebe e nele me aninho. Seus fios solares me fazem cócegas, me fazem rir. Me alimentam. Não te afastes. Não me toques, não te aproximes tanto, mas não te vás. Tenha infinita paciência comigo, porque infinito é o número de dias em que te esperei.  Me acolhe em teu coração, me guarda em tua alma que é manto de lã; estouro de ovelhas por pradarias de luz.

Resgata-me da existência ambígua, da confusão do ar. Limpa esta substância turva, feita de silêncio, um silêncio que adere a meus sentidos e os obscurece, que penetra em minhas entranhas e me afoga. Quero ser coberta da minha desnudez pelo manancial tépido do teu sorriso, jamais pelas sombras difusas que me consomem.

Onde não chega a tua presença
o amanhã é apenas um perfume
fragrância mórbida de nefasta solidão.  

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 30-8-2020

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