Carina Bratt
Venho pela calçada daquela avenida movimentadíssima e, de repente, na frente de um restaurante, me deparo
com um piano colocado à entrada principal desse estabelecimento famoso e bem
conceituado aqui na cidade.
Uma menina de mais ou menos oito anos toca, ou melhor finge tocar uma
música qualquer que não distingo a autoria. As pessoas passam, cruzam, se
esbarram e sequer olham para ela. Quando se retira, um morador de rua, aí pela
casa dos quarenta, maltrapilho e magro, os pés descalços e olhar faminto, se
senta estabanadamente na banqueta.
Ao fazê-lo, fica por alguns segundos olhando para o nada, como se
pensasse o que deveria tocar. De repente, se dedica ao teclado do instrumento.
E à medida que vai tocando, as pessoas que cruzam, tanto indo quanto vindo, se
detém a ouvi-lo. Agora, não se determinam somente em passar. Param, de fato.
Estancam os passos, se embevecem, se empolgam, a ouvir as notas maviosas
que vêm das mãos ágeis daquela pobre criatura que a executa. Em questão de
minutos, o depauperado se vê cercado por uma multidão que se forma, para se
inebriar com a música que ele dedilha.
De repente, o milagre. Os
expectadores aplaudem o pianista que parece, apesar de pobre e malcheiroso,
conhecer o instrumento, tanto quanto as feições entristecidas que vincam seu
rosto desgraçado, todavia, alguma coisa nele, vinda da alma não deixa
transparecer o tamanho da sua dor interior. Pura aflição.
E não só isto. Igualmente os
“passantes” se embasbacam com a melodia que ele tão bem executa, as mãos ligeiras,
como se a sua frente, um maestro diante de uma partitura invisível, lhe fosse
mostrando, com a batura, a sequência lógica de cada nota.
A música flui como um pássaro ligeiro levando em cada sonância de suas
asas, a alegria contagiante que o mendigo deixa escapar de dentro de seu
coração. As pessoas, em derredor, agora
em maior número, dão a impressão de presas ao chão. Umas fazem uso de seus
aparelhos celulares e gravam eternizando o momento.
Outros simplesmente escutam e se deleitam. A menininha de antes, retorna
e fica extasiada ao sabor inimitável da canção. Um grupo de senhoras faz
pequenas vaquinhas, arrecadando moedinhas e trocados e deixando as
contribuições ofertadas em cima do móvel que guarnece o piano.
Por conta da emoção, euzinha viajo. A música quando me toca, me faz
viajar. Viajar para bem longe num distante que nem eu sei bem onde fica. E a
melodia que o desconhecido executa, me afasta do cotidiano. Apesar da claridade
do dia parecer se resplandecer em formas mágicas me sinto como se fosse
abduzida.
Em plano paralelo, um sol de quase meio dia apura os ouvidos do Criador
para eternizar aquele momento único. Quando ele termina, as pessoas o aplaudem.
Em coro uníssono, pedem bis, gritam para que não se retire, que permaneça e
continue a tocar.
Não importa se o mendigo, se sequência repita a música, uma, duas, dez
vezes. A galera quer seguir se deleitando com o som que ele tira daquele piano
encantado. De dentro do restaurante lotado, clientes deixam seus lugares,
abandonam seus pratos sobre a mesa e vêm para fora, para melhor poderem ouvir o
que o pianista desasseado, as roupas esbodegadas, os pés no chão e a barba por
fazer tocará na sequência.
Os olhos baixos, a boca escancarada, os dentes esfomeados implorando
silenciosos por um prato de comida, faz dele, um herói anônimo. Então, sem mais
nem menos, ele para de tocar, se levanta devagar, solene, recolhe as migalhas
que uns poucos gatos pingados deixaram sobre o piano, e sem olhar para trás, se
afasta e some como poeira, entre a afluência de trocentas cabeças que vem e
vão.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Vila Velha, no Espírito
Santo, 6-9-2020
Donald Gould, 51, é um
mendigo que vive nas ruas de Sarasota, no estado da Flórida, Estados Unidos. Ele
sabe tocar piano, e é isso o que ele faz no vídeo acima, mas de maneira
surpreendente. Gould toca com habilidade e paixão.
Formado em música pela Spring
Arbor University, o ex-oficial da marinha dos EUA tornou-se dependente
químico após a morte de sua esposa em 1998. Ele toca piano desde criança.
Impossível não se emocionar
com o vídeo.
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