Se “neutra” e “consensual”, a “Cidadania”
não seria louvada pelos que a louvam. Dos que vi, não vi um só sujeito
habilitado a ensinar fosse o que fosse a um hipotético miúdo.
Alberto Gonçalves
Há muitos motivos para
simpatizarmos com a luta de um cidadão para que os seus filhos não frequentem a
“disciplina” de Educação Para a Cidadania, ou Cidadania e Desenvolvimento (as
fontes variam e, dada a cretinice do tema, não serei eu a torturá-las para
apurar a verdade: fica “Cidadania”).
O primeiro motivo, um tanto aborrecido, é constitucional:
“Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” e “O
Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura
segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou
religiosas”, diz o Texto, Sagrado para umas coisas e absolutamente desprezível
no que toca a outras. Parece uma questão de bom senso. Para os estatistas, é um
ultraje. Um secretário de Estado, o sr. Galamba, acha que os pais decidirem o
que é melhor para os filhos é delírio de “libertários”, e que compete ao
Estado, leia-se a vultos do gabarito do sr. Galamba, a tarefa de corrigir a
péssima influência de certos progenitores. No mundo real, suspeito que até
progenitores alcoólicos, xenófobos e praticantes da bisca são preferíveis à
catequese de frei Galamba.
Aqui chegamos ao segundo motivo. Não há regime sem tentação
de educar as massas. Nos regimes democráticos, o esforço é subtil e, na pior
das hipóteses, um bocadinho traumático. Nos regimes de tendência autoritária,
como o vigente neste lugar sem sorte, o esforço é brutal. E perigoso. Da
Juventude Hitleriana ao Komsomol soviético, nenhum governo totalitário dispensou
a criação do “jovem ideal”, ou seja, de encher as cabecinhas das crianças com
restolho doutrinário. O objetivo era a produção de cidadãos exemplares,
naturalmente incapazes de questionar os crimes dos seus superiores e capazes de
lhes obedecer com alegria. As ditaduras moderadas (ver “salazarismo”) tinham
versões moderadas disto (ver “Mocidade Portuguesa”). Sucede que nações decentes
não ambicionam modelar súbditos, e sim constatar a coexistência livre de
pessoas livres. E por “livres” entenda-se a faculdade de, caso queiram,
detestar zulus ou admirar o dr. Costa – a liberdade não se mede pela sensatez.
Eis o terceiro motivo. Dado que, num membro da UE
e em 2020, seria talvez excessivo enfiar farda nas crianças e pô-las aos
“vivas!” ao governo, em marcha acesa e punho erguido, o “ensino”, ou o conjunto
de atrocidades que passa por “ensino”, serve para compensar esse desagradável
revés. Já há trinta e tal anos, tive professoras de liceu que tocavam discos de
“Zeca” Afonso nas aulas (o “tiriririri” de “Venham Mais Cinco” é fundamental à
fruição da língua). Imagino as palhaçadas que hoje acontecem por aí. Pelos
vistos, não aconteciam as suficientes e houve que inventar a cadeira de
“Cidadania”, para as palhaçadas se explanarem com à-vontade. Convém notar que o
cenário para as ditas não é a escola, mas o Chapitô.
E cá está o quarto motivo. Como a função da escola, a
verdadeira, é fornecer conhecimentos técnicos e rudimentos para pensar, ao
contrário de evangelhos para repetir, as “matérias” devem ser o mais
impermeáveis possível à subjetividade, a do professor e a das criaturas que
concebem os programas. Claro que isto é relativamente simples de conseguir nas
ciências de facto, Matemática, Física, etc., onde os discos do “Zeca” ou do
padre Fanhais soariam esquisitos. E menos simples de assegurar nas aulas de
Português, História ou Economia, onde os docentes podem, ocasionalmente, emitir
palpites que ninguém lhes pediu. Na disciplina de “Cidadania”, porém, a subjetividade
é o programa completo e a “matéria” inteira. Os alunos não saem dali prontos a
debater: sobretudo se não beneficiarem de contraponto caseiro, saem prontos a
reproduzir uma cartilha, para cúmulo uma cartilha pensada por “ativistas” de
esquerda ou ociosos sortidos. É a religião deles, e a moral idem.
Vamos ao quinto motivo. Os “conteúdos” da
“Cidadania” oscilam entre o mofo das regras de trânsito (e da economia
doméstica) e o “progressismo” beato da “identidade de género” (e das
“alterações climáticas”). Um pirralho de 12 anos precisa que a escola o ensine
a atravessar a rua ou a ponderar uma mudança de sexo aos 16? Não precisa.
Precisa de saber ler, escrever e contar e, com sorte, raciocinar, tarefas que
os espécimes entusiasmados com a tralha das “causas” não dominam – donde o
entusiasmo por “assuntos” simples. Um senhor João Costa, sec. da Educação,
escreveu a propósito um artiguito no “Público” onde evidencia as carências
citadas: se devidamente educado, nem o pirralho de 12 anos assinaria tamanha
miséria lexical e argumentativa. Segundo o indivíduo, quem discorda da
“Cidadania” não é bom cidadão, no sentido em que quem não janta no Petiscos da
Avó morre de fome. Uma das Manas Mortágua defende a “Cidadania” a pretexto da
defesa dos “direitos humanos”, também incluídos naquilo. Lembro que, no que
respeita aos “direitos humanos”, as Manas Mortágua partilham o conceito de
Lenine.
Olhem o sexto motivo, para mim decisivo e bastante.
Se “neutra” e “consensual”, a “Cidadania” não seria louvada pelos que a louvam.
Autoritários e intolerantes, os partidários da “Cidadania” são os cidadãos de
que o país se poderia livrar sem qualquer prejuízo. Dos que vi, não vi um só
sujeito habilitado a ensinar fosse o que fosse a um hipotético miúdo (exceto a
título preventivo, para que o petiz aprendesse, com o susto, os resultados da
ignorância e do fanatismo). De matarruanos socialistas aos transtornados do BE,
passando pelo espetacular Nogueira sindical, juntou-se aqui o exato tipo de
gente de que uma família consciente mantém a prole à distância. Puros resíduos,
desgraçadamente não recicláveis. O bolor dos Grandes Educadores tem um
cheirinho a sacristia que nem vos digo. Eles dizem.
Resta um pormenor: o homem que
impediu os filhos de engolir a gosma do “pensamento” único e que, sozinho,
enfrenta as garras prepotentes deste Estado chama-se Artur Mesquita Guimarães.
Vive em Famalicão e é um raríssimo herói. E, ele sim, um cidadão a sério.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
5-9-2020
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-