quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Luiz Felipe Pondé. "Dizer que homens e mulheres são iguais transforma a cama de casal num inferno"

Caro leitor, esqueça Rousseau, enterre Marx. Os homens não são todos iguais – há uns poucos, melhores, que carregam a humanidade às costas. Maria Ramos Silva falou com o autor de “Guia Politicamente Incorrecto da Filosofia”. Catarina Valadão fotografou-o na Baixa de Lisboa


Daqui a uns séculos, esta época será vista como a da histeria feminina. Já agora, que fique claro, as mulheres só toleram a sensibilidade masculina até à página três. Enfim, somos basicamente covardes e a vida, basicamente, é infeliz. Prepare-se, porque o cenário tende a piorar: o futuro do mundo é ser brega. As conclusões supra enunciadas são todas dele: Luiz Felipe Pondé, estrela da filosofia do quotidiano brasileiro com direito a programa de TV, com total aversão ao politicamente correcto, e devoto da propaganda de uma marca de roupa islandesa: “Respeite a natureza, mas não há garantias de que ela o respeitará de volta.”

Um dos seus sonhos é deixar de viajar tanto como hoje. Como vai resolver isto escrevendo bestsellers?
É, eu conto isso no livro. Eu hoje procuro viajar só para lugares que gosto, ou então por trabalho que acho importante. No caso desta viagem, é por trabalho, e Portugal é o país da Europa que mais gosto.

Não está a ser politicamente correcto?
Não, é verdade. É a sexta vez que venho a Portugal, inclusive acompanhei todo o processo da entrada na Comunidade Europeia. Sinto-me em casa. Brasil parece-se muito com Portugal.

Em que aspectos?
Não sei se os portugueses têm noção disso; sei que muitos brasileiros não têm porque não conhecem Portugal, mas a mentalidade, o jeito, o modo como se movimentam na cidade. Cidades como Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Ouro Preto parecem-se muito com Portugal. Continuo procurando não viajar. Acho que as viagens se tornaram insuportáveis, os aeroportos são um inferno.

Um antro de “pobres de espírito”, como diz?
Ah, sim. Tem uma expressão que não sei se faz sentido aqui, que é quando se diz que você virou churrasco na laje. É uma expressão muito local, de São Paulo especificamente, onde existem essas festas de periferia onde tocam música horrível, fecham o trânsito, fazem bagunça, e fede. Os tais pobres de espírito.

Falava das parecenças entre os dois países. Diz que o Brasil ainda está relativamente blindado ao politicamente correcto. E por cá?
Existe o politicamente correcto no Brasil nas universidades, nas redacções de jornais. Agora, por exemplo, o Ministério da Igualdade Racial quer tirar o Monteiro Lobato, um autor importante, das listas de bibliografia das escolas. Tem, muitas vezes, ingerência na publicidade. No Brasil não é tão forte como nos EUA, mas nos últimos tempos o politicamente correcto entrou muito. É uma espécie de nova esquerda.

Uma certa ditadura do gosto?
É, exactamente. Determina a sua estética, o seu comportamento, a sua linguagem. Historicamente, tem uma esquerda que fez a revolução russa, uma primeira geração, que queria quebrar com o capitalismo; e uma segunda esquerda de gente como Foucault, que é uma esquerda que não quer acabar com o capitalismo, quer controlar o modo como você pensa, como fala.

E que se eterniza nas universidades?
Exactamente isso. Controlam a bibliografia. É uma discussão que tenho tido muito no Brasil, enquanto professor universitário, sobre o controlo da bibliografia, no sentido de não deixarem entrar autores da tradição britânica, por exemplo, que são vistos como conservadores, liberais. E há uma coisa: o Brasil vive hoje uma situação de riqueza económica. O mercado de livros facilmente cai sob o controlo de um governo que diz que não é socialista, mas é. Tenho impressão que o problema em Portugal talvez seja menor, mas não sei.

Aqui usamos a expressão “fazer um frete”, fazer algo que não nos apetece mas que, socialmente, é bem visto. O politicamente correcto vai além disto?
Ah, entendo. No Brasil é o socialmente correcto. O politicamente correcto pede que você altere a linguagem, gestos, com a intenção de fazer uma mudança política. Isso tem um acesso falso. Você pode ser o maior canalha mas, se falar a frase politicamente correcta, então está tudo bem com você.

Encontra a raiz do movimento ao final dos anos 60, nos EUA.
É, o politicamente correcto, tecnicamente falando, nasce da correcta necessidade de ampliar a educação doméstica nos espaços públicos. Começa a ter o caso dos negros circulando nos espaços públicos, e aí deve ter cuidado com o que fala, evitar grosserias. Só que isso rapidamente foi captado por uma nova esquerda que quer controlar o pensamento. Os EUA têm uma escola filosófica que a priori não tem nada a ver com isto, o pragmatismo, que entende que se você mudar o modo de uma pessoa falar, muda-lhe a forma de ver o mundo. Acabou por se tornar uma censura. Grupos politicamente correctos na universidade, se você não concorda com eles, eles te perseguem, tiram verbas.

Tem sentido isso entre os seus pares?
Todos os dias. Inclusive no caso da minha universidade, a Universidade Católica de São Paulo, quando mandam um email com “caros professores”, no lugar do “o” colocam uma arroba, para não chocar. É quase impronunciável. Tem um certo fascismo no politicamente correcto, tal como o nazismo teve no seu início uma tendência para controlar a língua. Desde o “1984” do Orwell, isso aparece. Pessoalmente, na minha vida na universidade e nos media, tenho um público bastante alto. Por isso este livro é um dos mais vendidos do Brasil. As pessoas comuns estão de saco cheio disto.

Mas como se explica esse sucesso se a maioria é “um bando de idiotas” politicamente correctos? Não dizem o que pensam?
É, por exemplo, quando escrevo sobre mulheres. Hoje no Brasil, dou muita entrevista para revistas femininas. Há uns dias também dei uma para a “Veja”, generalista, sobre “Os 50 Tons de Cinza” (“As Cinquenta Sombras de Grey”). O que entendo? Bom, as feministas me detestam, mas tenho muitas leitoras mulheres na “Folha de São Paulo”, alunas, espectadoras, que gostam de mim porque entendem que não acho que a mulher deve estar na cozinha. Isso, nem discuto. Entendem que sou um homem que gosta de mulheres e não tem medo de falar. O que acontece hoje é que grande parte dos heterossexuais tem medo de falar o que pensa sobre as mulheres, pela patrulha. Acontece que as mulheres me lêem e me entendem. Discuto as dificuldades que homens e mulheres têm para se entender.

É por isso que está mais próximo do escritor Nelson Rodrigues que de Rousseau?
Muito mais. É o meu próximo livro. Chama-se “A Filosofia da Adúltera”. Acho que a grande parte das pessoas sabe que não sou um bicho-papão, que não sou reaccionário, racista, e identifica-se. Grande parte dos meus colegas intelectuais falam todos a mesma coisa. As pessoas estão de saco cheio disso, daí o eco.

À partida, o livro seria um pretexto para fazer mais inimigos que amigos, mas afinal não é assim?
Na universidade, mais inimigos, entre os pares. Alunos, não. Tenho uma demanda de alunos muito alta quando oriento mestrados e doutoramentos. O ódio é dos pares. Não sei como é em Portugal, mas já convivi na Alemanha, na França, no Brasil e em Israel. Sobre esses quatro países, reconheço o mesmo tipo de fenómeno.

Que fenómeno?
A universidade na área das ciências humanas, normalmente, é um espaço de formação de igrejinhas. As pessoas trabalham pouco, lêem pouco, não gostam de dar aulas. Eu gosto de dar aulas. Antes de fazer filosofia fazia medicina. Já estava casado e tinha um filho e não queria fazer plantão nem ser médico. Quando resolvi fazer filosofia, fui ganhar a vida dando aula de inglês. Descobri que gostava de dar aulas. O meu problema com os pares é esse. Como gosto de dar aulas, os alunos gostam de ter aulas comigo. Comecei a ter muitos alunos.

São vestígios da tal “inveja infantil”?
É, o problema com os pares começou antes de virar bestseller e aparecer na televisão. Mesmo quando publicava só livros académicos, já tinha problemas. Eu ou qualquer colega que tenha a sala cheia vai ter inimigos.

Essa esquerda não reconhece competência intelectual a quem se assume de direita?
Pelo menos no Brasil é assim. Veja o nosso caso, tivemos uma ditadura. Quando acabou, a esquerda tinha o controlo das universidades, das redacções de jornal, e os maiores e principais partidos políticos são de esquerda. A esquerda, no Brasil, faz-se de vítima quando na verdade não é. A ditadura matou muita gente, gente que era contra a ditadura e gente que queria fazer outra ditadura, de esquerda. O resultado é que no Brasil, hoje, a esquerda, que é meio aguada, tem um domínio inercial da inteligência. E é aí que o politicamente correcto é mais forte.

Como, por exemplo?
É uma espécie de ser de esquerda em que você não paga conta. Agora estamos a passar pela reforma do código penal. Um dos lugares onde essa esquerda tem mais impacto é na formação dos juristas. Há uma piada a propósito. O Brasil é o país com a maior biodiversidade animal e vegetal do mundo. Se um dia um fiscal que cuida da Amazónia pegar você a matar um jacaré, mate o fiscal. Porque, se matar o jacaré, você vai ficar cem anos na cadeia! O fiscal, três meses. Esse tipo de atitude vai tomando conta de forma invisível, em todos os lugares de produção pública de pensamento.

Onde ficam os conservadores na produção de pensamento?
A direita, e refiro-me ao pensamento liberal “conservative”, da tradição britânica, da liberdade de mercado, individual, não chega sequer a ser isso no Brasil. Pessoal, leiam David Hume, Edmund Burke. Não há acesso. Há uma especificidade nas ciências humanas: você pode falar o que quiser, não tem como cobrar. Se aprender a fazer pontes e a ponte cair, será avaliado. Mas o professor de Sociologia ou Filosofia pode jogar as ideias que quiser na sala de aula. Um cara com 60, há 40 a falar do mesmo, não vai mudar da hora para a outra.

Na bibliografia que recomenda também há espaço para os politicamente correctos?
Sim, mas os textos de esquerda, eles conhecem todos. É isso que se aprende o tempo inteiro. É tradição descendente de Marx, Rousseau. Agora, os descendentes de Tocqueville, conhecem pouco no Brasil. É essa que estou trazendo.

Afastando-se da “política para mulherzinhas” de Obama?
Ah, Obama no Brasil é um santo. Critico muito o culto do Obama no Brasil. Quando foi eleito, falei que o governo ia ser um fiasco, porque prometia o que não pode cumprir, nem ele nem nenhum. Pegue o exemplo de Guantânamo. Aquela baía é essencial para a segurança dos EUA. É um horror, porque há tortura, sofrimento, mas o mundo é meio feio quando você é responsável pelas coisas. Tenho a impressão que Obama representa um pouco uma mentalidade de centro académico. Sabe o que é centro académico?

Uma associação de estudantes?
É, onde os alunos tanto podem discutir greve como fumar maconha. Política para mulherzinha é uma expressão brasileira. Tenho impressão que grande parte da política da esquerda brinca com esse tipo de política, quando política internacional é coisa séria. Obama não ia conseguir fechar Guantânamo. Os EUA não podem sair do Médio Oriente. Existem interesses sérios ali dentro. Há uma inflação do bem, de querer passar a imagem de que se é bom.

Também fala da derrocada da Europa, refém do “Estado babá”. Como nos vê?
Acabei de escrever esse livro na Inglaterra, no King’s College. Falava muito dessa contaminação meio teenager da cultura, do “welfare state”, que cria uma espécie de dependência em vez de estimular a ser adulto. Quem está do lado de fora tem impressão que a Europa, e digo Bruxelas, é uma grande tecnocracia que atraiu grande parte dos países, inclusive Portugal, com a ideia de um consumo alto, muito rápido. E, como toda a tecnocracia centralizada, não tem condição para dar conta das diferenças. O português não é o alemão, como não é o grego. Penso que a Alemanha conseguiu fazer o que queria fazer na I e na II Guerra, fazer um grande Reich e conquistar a Europa toda. É essa a impressão que tenho, e não sou só eu. Em relação à viabilidade do euro, penso que se sair agora no meio será pior ainda.

Sabe que nos visita numa fase especialmente agitada?
O governo quer aumentar os impostos, não é isso? Sabe que, em comparação com o Brasil, as coisas aqui estão incrivelmente baratas. O Brasil está caro como Londres. Chegámos hoje de manhã [dia 21] e fiquei impressionado. O preço é um terço do Brasil. A impressão da Europa é que as caravelas foram queimadas. Usa-se no Brasil em relação aos portugueses. Foram para a América e não tinham como voltar – as caravelas foram queimadas. Não dá para voltar para o escudo a não ser ao preço de uma grande catástrofe. Acho que vai levar uma geração inteira a mudar isso.

Por falar em geração, o que o fez ir para medicina?
Uma coisa meio banal. O meu pai era médico, o meu avô era médico, a minha irmã mais velha é médica. Eu era bom aluno, gostava de biologia, e a psicóloga no colégio jesuíta disse-me: “Felipe, você tem que ser médico.” Uma coisa besta.

Concluiu o curso?
Não fiz o que chamamos de residência, quando se faz especialização. Mas tive experiência de hospital, muita, na área de ginecologia e obstetrícia. Pensei ser psiquiatra também. Comecei a ter crise com medicina no segundo ano. Uma vez, ainda no primeiro ano, fiz uma pergunta ao professor. “Como é que um paciente que está morrendo se vê diante do facto de que está indo em direcção ao nada?” Aí o professor virou-se para mim e disse que eu estava na aula errada, devia estar em filosofia. Achei ele um grosso.

Um grosso com razão?
Ele estava com a razão. No começo do segundo ano, tranquei a matrícula e fui morar um ano no kibutz, em Israel. Voltei, para medicina ainda, casei, tive um filho – médico, claro –, e comecei a estudar psicanálise. Foi ela que me levou para filosofia, para me ajudar a exercer a clínica.

Só um louco vive de filosofia, dizia você. Foi fácil a transição?
Até hoje, na minha vida, sempre dei muita sorte. Gosto de ler, estudar, mas peguei o Brasil num momento de ascensão económica, um país consumindo filosofia em várias frentes. Vou estrear um programa meu em Novembro onde entrevisto pessoas e discuto vários temas. Mas fui um louco. Casado, com um filho. O meu sogro queria me matar.

Há essa abertura para um formato com filosofia na TV?
Já gravei cinco programas. Sobre sexo, casamento, depressão, religião, política, morte. Convidamos diferentes pessoas e colocamos uns em conflito com outros. Vamos fazer uma colecção de filosofia de bolso discutindo estes temas. Imagina, este livro é dos mais vendidos. Claro que não é filosofia para profissional, mas há mercado. No Brasil, o que aconteceu comigo é muito inspirador para colegas e alunos. Sou alguém da academia, e isso atrapalha quem quer discutir comigo, porque sou um deles, estudei tudo, não podem me acusar de charlatão. Mas é muito doido. No Brasil dou autógrafos na rua, no aeroporto, na rodoviária, no restaurante.

Um culto ao nível de celebridade.
É isso mesmo. Eu não tenho site, mas há sites sobre mim. Ex-alunas minhas vão criar um blogue sobre o meu estilo. Há essa cultura. É como na novela.

A “praga” do politicamente correcto já se reflectiu no que escreve?
Na minha coluna na “Folha”, por parte de alguns leitores. Pediam para ser demitido, faziam abaixo-assinado, mandavam cartas para a redacção, esse tipo de manifestação de gente pedindo a minha cabeça. Mostra ignorância em relação à cultura do jornal, porque para o jornal é muito bom. Ao mesmo tempo, há gente que me idolatra. Você vê gente com quem se dava bem dizendo que você é fascista. Mas ainda não tive nenhum exemplo de tentarem censurar o que eu escrevo. Agora, aquilo que os politicamente correctos chamam de assédio moral, isso vivo quotidianamente.

Desmotiva-o?
Me motiva, mas às vezes me enche o saco. Dá vontade de dizer “tchau”. Financeiramente e filosoficamente, não precisaria mais de dar aulas, mas gosto de alunos, só que é desgastante conviver com esse assédio. Eu falo o que eu penso, o que é um problema. Os meus colegas só dizem o que é bonitinho e as pessoas não são assim. Quando você diz que homens e mulheres são iguais, transforma a cama do casal num inferno.

“O mundo não tem salvação” mesmo?
Não tem, e sempre foi assim. Quando vejo o marketing da generosidade, parece que estou a ver um milagre. Acho muito bonito isso. É muito comum perguntarem-me porque sou professor, se sou pessimista. A educação serve para ajudar as pessoas a lidar com a sua humanidade, para perceber que aquilo que você pensa já foi pensado milhares de vezes, e que a vida se divide em três grande áreas, saúde e doença, amor e afecto, trabalho e dinheiro. A humanidade roda, roda, anda um pouco, anda para trás. Gosto de falar com as pessoas sobre o que penso porque sei que muitas pensam o mesmo. No fundo, de problemas e angústias, somos todos muito parecidos.
Entrevista concedida a Maria Ramos Silva, jornal “i”, 01-10-2012
Indicação: Vitor Grando Pereira

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