Como está num mundinho onde ninguém é capaz
de alertá-lo sobre o despropósito de declarar que o Brasil vive uma “ditadura”,
o ministro vai em frente
J. R. Guzzo
O ministro Luís Roberto
Barroso, a exemplo do que vem acontecendo com frequência alarmante entre a
maioria dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal, tem oferecido ao
público uma sequência do que parecem ser acessos cada vez mais severos de
excitação nervosa. Seria apenas problema dele, é claro, mas, por uma dessas
coisas que só acontecem com o Botafogo e com o Brasil, o homem é ministro
daquilo que tem a função legal de funcionar como a “suprema corte” do país.
Nada de mais, na verdade, para um tribunal presidido até ontem por um cidadão
que foi reprovado duas vezes no concurso público para juiz, recebia uma mesada
de R$ 100 mil da mulher advogada e escreve decisões num português tão ruim, mas
tão ruim, que nem pode receber nota; é simplesmente incompreensível. Mas uma
calamidade não diminui de tamanho pelo fato de ser acompanhada de outra — e
Barroso, de uns tempos para cá, resolveu dar um notável upgrade, como
se diz, nos teores de ruindade desenvolvidos até agora pelos colegas. É osso.
O ministro, ultimamente,
parece ter convencido a si próprio de que é o grande líder da oposição no
Brasil — e como vive 100% selado dentro de um mundinho onde ninguém é capaz de
alertá-lo sobre o perfeito despropósito de achar uma coisa dessas, ele vai em
frente. Por que não?
Barroso é levado terrivelmente
a sério pela mídia, pelo senador Alcolumbre e por outros colossos da nossa vida
política, intelectual e “civilizada”. É natural que acredite, como o galo
Chantecler da fábula de Rostand, que o sol só nasce porque ele canta. Seu mais
recente manifesto à nação e ao mundo foi também um dos mais esquisitos do seu
repertório. Falando num inglês de curso Berlitz mal concluído, naquele sotaque
de brasileiro que tenta imitar o que imagina ser a pronúncia “norte-americana”
(era um vídeo do Instituto Fernando Henrique para uma plateia estrangeira
— assista abaixo), Barroso revelou que o Brasil vive numa dic-tator-ship,
que o presidente Bolsonaro é a favor da tortura e outros prodígios da mesma
natureza. Levou meia hora para falar esse dic-tator-ship, assim
mesmo, sílaba por sílaba. Quis parecer um tipo cosmopolita. Acabou sendo apenas
cômico.
Como assim, “ditadura”? Para
levar a sério por mais de cinco minutos a acusação do ministro, seria preciso
que ele demonstrasse, com base em algum fato objetivo, porque o Brasil de hoje
seria uma ditadura. E então? Quais os atos contra a democracia, as leis e as
“instituições” praticados por Bolsonaro ou membros do seu governo? Em que data?
Em que lugar? O governo enviou à Câmara ou ao Senado algum projeto que possa
ser descrito como antidemocrático? Qual? Quando? E decreto — há algum decreto
presidencial contra a democracia? Houve algum episódio, em vinte meses de
governo, em que o presidente da República deixasse de cumprir alguma ordem da
Justiça ou qualquer outra determinação legal?
Talvez nenhum outro governo na
História do Brasil tenha sido tão atacado pela imprensa como o de Bolsonaro —
começou a apanhar antes mesmo de tomar posse e não parou até hoje. Durante esse
tempo todo, não houve nenhuma tentativa de censura, aberta ou disfarçada, contra
qualquer órgão de comunicação. Nenhum jornalista brasileiro ou estrangeiro foi
incomodado até hoje, por nenhum motivo. (O ex-presidente Lula, a título de
comparação, quis expulsar do Brasil um correspondente norte-americano que deu a
entender num artigo que ele era bêbado: só não o expulsou porque não
conseguiu.)
Bolsonaro nunca chegou a fazer 10% dos elogios desesperados que o
jornal O Globo fez ao golpe militar
O que houve, e apenas uma vez,
foi uma tentativa de ação legal contra um jornalista que escreveu o seguinte:
“Eu quero que o presidente morra”. Mas e daí? A coisa não deu em nada, e nem
deveria mesmo dar, porque não é contra a lei querer que o presidente, ou
qualquer outra pessoa, morra. O problema é apenas de quem escreveu, do veículo
que publicou isso e dos leitores, a quem cabe julgar esse tipo de desejo.
Jornalistas são processados o tempo todo na Justiça, pelos mais diferentes
motivos — não estão acima da lei, como se sabe. Nessas ocasiões, procuram um
advogado e esperam a decisão da Justiça. Qual é o problema? Não há nada de
errado com isso. Em compensação, Barroso despacha a poucos metros do ministro
Alexandre de Moraes, que já censurou a revista digital Crusoé,
proibiu que jornalistas de direita escrevessem ou falassem nas redes sociais,
cassou perfis no Twitter, meteu a Federal em cima deles, apreendeu celulares,
mandou depor, o diabo. Esse mesmo ministro conduz há um ano e meio um inquérito
absolutamente ilegal contra quem ele considera divulgadores de “notícias
falsas”. Quem é o censor da imprensa nessa história: Bolsonaro ou o STF?
Jair Bolsonaro pode ser um
presidente ótimo, bom, médio, ruim ou péssimo, dependendo do lado em que você
está. Lula e Luciano Huck acham que ele é péssimo. O general Heleno e Luciano
Hang acham que ele é ótimo. O que ele não é, com certeza, é um ditador; não
existe no mundo nenhum ditador que tenha sido eleito para o cargo por 58
milhões de votos em eleições livres, universais e democráticas, nas quais o
único ato grave de violência foi a tentativa de assassinato que ele próprio,
Bolsonaro, sofreu durante a campanha.
O que Barroso está dizendo — e
no fundo ele está dizendo só isso, mais nada — é que o presidente é
antidemocrático porque elogia o regime militar. É um argumento de centro
acadêmico em faculdade de segunda linha. E os milhões de brasileiros que acham
exatamente a mesma coisa — e para os quais o que o ministro chama de dic-tator-ship foi
um dos melhores períodos que o Brasil já viveu? O que Barroso sugere que se
faça com eles? A propósito: Bolsonaro nunca chegou a fazer 10% dos elogios
desesperados que o jornal O Globo fez ao golpe militar e ao
regime que saiu dele. “Fabulosa demonstração de repúdio ao comunismo”, dizia a
manchete da edição de 3 de abril de 1964 de O Globo. Durante
os 49 anos seguintes as organizações Globo continuaram dizendo basicamente a
mesma coisa — até que, em agosto de 2013, resolveram pedir desculpas por ter
escrito o que escreveram. Tudo bem. Mas quem disse isso foram eles, e não o
presidente. Por que o ministro não vai reclamar com a Globo?
Não vai porque seu interesse
não é determinar quem foi contra ou a favor de coisa nenhuma, e sim aparecer
como o principal condutor da “resistência democrática” no Brasil. É duvidoso
que seus colegas de STF, onde o nível de estima mútua é um dos mais baixos que
se podem encontrar entre onze pessoas, concordem com a avaliação de líder que
Barroso faz de si mesmo. O “Supremo”, notoriamente, é um lugar de muito chefe e
pouco índio — mas ficar contra o governo, hoje em dia, é o que se chama de uma
grande career opportunity, como diria o próprio ministro num dos
seus sermões em inglês. Antes de lançar sua proclamação pró-democracia, Barroso
já tinha se juntado, um pouco depois dos outros, ao bloco “Unidos do
Genocídio”, formado no STF para denunciar Bolsonaro pelas misérias da covid-19
— numa tentativa de resultado ainda incerto para esconder a responsabilidade
dos ministros na decisão de entregar às “autoridades locais” todo o combate à
epidemia. O fato é que — por ordem direta do STF — as 130 mil pessoas cuja
morte é atribuída ao vírus estavam, do ponto de vista da saúde pública,
entregues à custódia exclusiva dos 27 governadores e 5.500 prefeitos quando
morreram. Como é que se vai apagar isso? A saída tem sido a negação sistemática
e organizada da realidade — e acusar Bolsonaro de “genocídio”.
Barroso afirmou considerar normal que cada ministro tenha um
funcionário para lhe arrumar o caimento da toga
O STF jamais vai conseguir
explicar o que fez nem apagar a decisão que tomou. O governo federal não ficou
afastado do combate à covid-19 porque quis abandonar o campo; isso foi assim
porque o STF mandou que fosse, em decisão oficial com força de lei. E agora?
Quem deu todas as ordens durante o período em que as 130 mil pessoas morreram
não foram os governadores dos Estados Unidos nem os prefeitos da Alemanha;
também não foram os marcianos. Foram esses que estão aí, e quem decidiu desse
jeito foram Barroso e seus colegas. Os ministros dão a impressão de achar que
está tudo resolvido, porque a classe política, a mídia e a elite fazem de conta
que acreditam neles. Pode ser. Para a população, no meio de toda essa conversa,
o que sobrou de concreto foi o seguinte: a única participação do governo
Bolsonaro no combate à epidemia foi dar os R$ 600 do vale de emergência a 60
milhões de pessoas.
Não há, na verdade, nenhuma
surpresa nisso tudo. Junto com a sua denúncia contra a dic-tator-ship,
o ministro Barroso afirmou em público que considera perfeitamente normal que
cada ministro tenha direito a um funcionário para lhe arrumar o caimento da
toga e puxar sua cadeira quando se senta nas sessões plenárias. De acordo com
Barroso, usar a toga é uma tarefa de altíssima complexidade; só mesmo quem não
tem noção das coisas pode ignorar que a capa prende aqui, puxa ali, enrosca
mais adiante. Em suma: é um perigo. O que iriam dizer se Bolsonaro falasse algo
parecido? É melhor nem pensar. O STF, porém, é um outro ecossistema. O ministro
Barroso faz lembrar uma daquelas gravuras de escravos negros que ficavam de quatro
ao lado do cavalo para servir de escada ao sinhô na hora de montar. A diferença
é que hoje é você quem paga o escravo.
Tudo a ver, não é mesmo?
Acusar os outros, como sabe qualquer psicólogo, é um dos truques mais
elementares e compulsivos dos que vivem num mundo falsificado: denuncie o
próximo, sempre, de fazer aquilo que você faz e quer negar que fez. Barroso foi
o advogado de defesa do terrorista italiano de extrema esquerda Cesare
Battisti, hoje devolvido à Itália e cumprindo pena de prisão perpétua, no seu
bem-sucedido esforço de asilar-se no Brasil para escapar da punição por seus
crimes, durante o governo Lula. Battisti, que segundo Barroso era um
“perseguido político”, assassinou quatro pessoas na Itália; antes de fugir para
cá, foi condenado por 70 juízes italianos, e também pela Corte de Justiça da
Comunidade Europeia. Segundo nosso ministro, então advogado, a Itália vivia
naquele tempo, entre os anos 70 e 80, sob uma “ditadura” — isso mesmo,
“ditadura”, uma acusação alucinada para um país que desde 1946 é uma das
democracias mais impecáveis do mundo. Como era uma “ditadura”, não tinha o
direito de punir um quádruplo homicida que matava pessoas porque obedecia a um
“ideal político”.
Qual o crédito que se pode dar
à acusação do ministro Barroso de que o Brasil vive uma ditadura hoje, quando
ele acusou a Itália de viver uma ditadura em 1980? A Itália não mudou
absolutamente nada de lá para cá; se era uma ditadura naquela época, então
continua sendo uma ditadura hoje. Não faz nexo, claro — mas não é mesmo para
fazer. Os ministros do STF, cada vez mais, estão tentando governar o Brasil sem
ter sido eleitos para nada. Estão fraudando a vontade da maioria da população
brasileira, expressa nas eleições democráticas de 2018.
Perderam no voto — e agora se
empenham em fazer o contrário de tudo o que o governo eleito se comprometeu a
fazer junto ao eleitorado. Utilizam um truque básico: declaram que tudo aquilo
de que não gostam é “inconstitucional”. Todo mundo fica quieto, ou bate palma.
Eles não veem nenhuma razão para não ir adiante.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista
Oeste, 11-9-2020
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