domingo, 27 de fevereiro de 2011

Logo agora, que éramos tão amigos

Foto: AD


Por cá, uma convocatória cresce nas páginas da internet. Começou por mobilizar jovens precários. Mas poderá arregimentar, também, neonazis e neofascistas.

A Líbia está no centro das atenções mundiais, como o terceiro regime árabe a poder cair em dois meses. E a verdade é que tudo isto foi verdadeiramente surpreendente, sobretudo a revolta na Líbia. Não se estranha que se verifique aqui a maior repressão, e o maior número de mortos, mas era inimaginável ver o duro regime líbio desestabilizado de forma tão eficaz e tão rápida. Sem imprensa internacional no país, sem telefones móveis e sem internet a funcionar, com a rede fixa intermitente e havendo apenas relatos esporádicos e localizados, à hora do fecho desta edição faltava informação fidedigna sobre a sorte da ditadura líbia e até mesmo acerca do paradeiro de Kadhafi. Mas uma coisa era certa: o regime líbio perdia o controlo de partes importantes do país, vários militares desertavam das forças armadas e a liderança de Kadhafi tremia.

Os povos árabes parecem estar, finalmente, a viver a sua hora. Um atrás de outro, ganham a coragem de sair para as ruas, em protesto contra os regimes totalitários que os governam, fartos de terem fome, fartos da corrupção, fartos da falta de liberdade que já não faz sentido nos dias de hoje, seja em que lugar do mundo for. E, em alguns casos, fartos, também, da loucura egocêntrica e despótica dos seus dirigentes. Ainda é cedo para saber o que vai acontecer nos diversos Estados, quem tomará conta do poder, o que irá, de facto, mudar, e se aqueles povos sairão destas crises com mais direitos políticos e sociais. Mas será impossível que tudo fique como se nada tivesse acontecido. E é difícil imaginar um cenário em que as coisas mudem para pior.  

Há muita gente em Portugal a lamentar o timing destas revoluções, "logo agora, que éramos 'amigos' de Kadhafi". Nós e muitos outros europeus. A Líbia é (era?) o nosso segundo fornecedor de crude, apenas ultrapassada pela Nigéria. Uma posição conquistada nos últimos anos, numa aproximação a Portugal que se traduziu em quatro visitas oficiais de Sócrates, em seis anos, e na abertura de uma embaixada em Trípoli. E que teve, recentemente, o seu pagamento com o aumento das nossas exportações para a Líbia e com um acréscimo da nossa presença empresarial no país. A substituição do crude líbio não levanta, segundo a Galp, problema de maior. O impacto vem por outro lado, pelo aumento dos preços, em resultado da instabilidade na região, mas isso afeta toda a gente de forma igual, independentemente de ser fornecida pela Líbia.

Para as outras empresas, a questão é diferente. As que exportam serviços e produtos para a Líbia não arranjam, já amanhã, mercado que a substitua. E para as que estão, de alguma forma, instaladas no terreno, seja com pessoal seja com imobilizado, o cenário é ainda mais preocupante.

Há, claramente, um risco adicional, quando um Governo, acompanhado por empresas nacionais, investe em diplomacia e negócios num país como a Líbia - sobretudo, num país liderado por um lunático como Kadhafi. Mas não vale a pena sermos mais cínicos do que já somos na gestão dos "negócios estrangeiros", para nos pormos agora com lições de moral sobre os parceiros que escolhemos para fazer comércio internacional. Até porque se presta melhor serviço às causas da liberdade e da democracia, integrando ditaduras na comunidade internacional, através do comércio, do investimento estrangeiro e do desenvolvimento econômico, do que votando-as ao isolamento. É a integração, a fusão de economias, de produtos e de culturas, que faz cair os ditadores.  

E depois, verdade seja dita, ninguém esperaria que o risco viesse daqui, do povo sair à rua para contestar a liderança do regime. Toda a gente sabia que o regime era mau e o seu líder pessoa pouco fiável. O que ninguém imaginava é que o regime fosse instável e suscetível de ser deposto. Ou seja, mais coisa menos coisa, que seria algo parecido, embora para pior, com a Venezuela de Chávez, outro dos grandes "amigos" que fizemos, nos últimos anos. Que este não presta, não presta mesmo, mas parece estar de pedra e cal.  

Azares da vida, portanto, porque o mundo continua a surpreender-nos, mostrando que ainda há espaço para as pessoas lutarem contra a tirania, mesmo numa improvável Líbia. Nesta matéria, resta aos empresários portugueses a consolação de que os povos árabes poderão sair da atual situação com regimes mais livres, mais democráticos e mais respeitadores das regras comuns do Direito. E, sendo assim, a esperança de que poderão encontrar amanhã, nestes países árabes, parceiros comerciais muito mais fiáveis e mercados com muito menor risco.

Por cá, uma convocatória cresce nas páginas da internet, para uma concentração na Avenida da Liberdade, em Lisboa, no dia 12 de março. A qual começou por mobilizar jovens desempregados e precários, num protesto contra a inexistência de oportunidades de trabalho, contra a incerteza do seu futuro, contra a impossibilidade de terem uma vida igual à dos seus pais. Que contará, ao que parece, com o apoio de algumas figuras marcantes da nossa esquerda. Mas que estará já, também, a arregimentar gente do outro extremo do espetro político, neofascistas, neonazis e demais saudosistas, que querem ir para a rua protestar contra a corrupção do regime democrático. Uma concentração que pode dar em nada, ou dar sabe-se lá em quê.  
A revolução Facebook, a revolta proclamada pela internet e pelos telemóveis, que funcionou na Tunísia, no Egito e na Líbia, e que está a "desassossegar" o Bahrein e Marrocos, ameaça também, em diferentes graus, a Argélia, o Sudão, o Iémen, a Arábia Saudita, o Koweit, os Emirados Árabes Unidos, a Jordânia e o Irão. E logo agora, que éramos amigos do Kadhafi, e que nada fazia prever uma coisa destas.
Pedro Camacho, Visão, 24-02-2011

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