Reinaldo Azevedo
Há certos eventos históricos
que são quase como operações aritméticas se atentarmos para a natureza de seus
protagonistas. Quando Descartes decidiu duvidar de tudo – chegou mesmo a
questionar se, em vez de Deus, não poderia existir um gênio maligno para nos
conduzir ao engano –, algumas certezas, no entanto, ele reafirmou: o ser que
duvidava ou que era enganado, sem dúvida, existia (daí o “penso, logo existo”,
na forma conhecida em português). E também existia a aritmética: estejamos
dormindo ou acordados, ele notou em uma das Meditações, três mais dois são,
inevitavelmente, cinco. Vejam que coisa: o cristão Descartes condescendia até em
especular sobre a inexistência de Deus ou a existência de seu antípoda, mas
sabia que, se ele próprio pensava (ou se enganava), então ele “era” (existia);
e também era fato a impossibilidade de que a soma de três mais dois pudesse
deixar de ser cinco. Pois é…
Era um dado da realidade
material – desses que, por sua natureza, estão acima de uma dúvida razoável – a
evidência de que a Irmandade Muçulmana tentaria (e tentará muitas vezes se não
for bem-sucedida agora) dar um golpe nas aspirações democráticas de parte da
população egípcia, com o objetivo de instaurar uma ditadura religiosa no país.
Era, na esfera da análise histórica, o “cogito ergo sum” cartesiano, o três
mais dois que somam cinco. E assim é porque é essa a natureza desse grupo.
Tanto quanto entendemos, os democratas, que a divergência é legítima e que uma
sociedade abriga e deve abrigar e proteger as diferenças, a Irmandade entende
que os que ainda não estão com eles ou se deixaram capturar pelo inimigo ou
ainda não avançaram o bastante no pensamento para alcançar as suas mesmas
prefigurações, as suas utopias, os seus valores.
Mohamed Morsi, foto:AFP |
Uma pequena digressão
Antes que trate dos eventos
desta quarta no Egito, faço aqui uma pequena digressão, que trata da cultura da
intolerância, que começa a render frutos no Ocidente, inclusive o Brasil. Os
que se erigem em donos do pensamento, aqui e mundo afora, estão firmemente
convencidos de que a sua opinião, nem importa se majoritária, não é uma entre
muitas. Ao contrário: ela representaria a evolução do pensamento, de sorte que
rejeitar seus postulados corresponderia a rejeitar a própria evolução. A
exemplo da Irmandade Muçulmana, os politicamente corretos de hoje, que também
representam uma seita, acham que todo mundo que “pensar direito” ou que “pensar
com honestidade” se perfilará com a sua “irmandade”.
Mandaram-me aqui, a propósito,
um vídeo de um desses feiosos esquisitos que arrotam suas incongruências na
Internet. O rapaz tem aquele arzinho de pensador sujinho, que cheira azedo. É
um desses imbecis que conseguem ser influentes em certos nichos. Alinhando-se
com algumas teses politicamente corretas, ele deixa clara sua utopia: eliminar
os que não pensam como ele. Não sabe, mas é um agente do fascismo cultural. O
tonto não se dá conta de que ele próprio pode ser a primeira vítima das ideias
nas quais acredita caso elas se tornem realmente majoritárias.
Fim da digressão.
Retomo
Desde o princípio, estava
claro que a Irmandade Muçulmana conduzia a dita “Primavera Árabe”, um sonho
sonhado por intelectuais ocidentais, não pelas forças militantes que se
levantaram contra, de fato, ditaduras. E não esperem, porque não acontecerá,
que eu as defenda. Mas igualmente não me peçam para viajar nas asas da utopia
de um grupo ou partido que entende que um país deva ser governado por leis
religiosas que, por definição, não reconhecem a igualdade dos homens perante a
lei porque “a lei” que os orienta não é, afinal de contas, a lei dos homens.
A Irmandade aprendeu – e é
inegável que aprendeu – que o caminho rumo ao poder contempla várias formas de
luta. Pode ser pela via das armas e da guerra civil. Mas também pode se dar
pelo movimento de massa, que passa pelo sufrágio das urnas. Líbia e Síria
assistiram a um tipo de levante; o Egito, a outro.
Mortos
Até quando escrevo este texto,
as agências internacionais e a rede de TV Al Jazeera – a emissora do Catar (uma
ditadura) é uma das grandes fomentadoras da dita “Primavera” – anunciam a morte
de pelo menos três pessoas no Cairo, nos protestos desta quarta, contra o
presidente, Mohamed Mursi. Foram vítimas de tiros. Os manifestantes protestavam
nas imediações do palácio presidencial quando foram atacados por partidários do
regime. E por que os descontentes estão nas ruas?
Porque o presidente Mursi, da
Irmandade, baixou um decreto que põe acima do alcance legal as suas decisões e
as da Assembleia, que elabora a nova Constituição. Mursi, em suma, foi eleito e
se concedeu, em seguida, poderes ditatoriais. Registre-se: nem o ditador Hosni
Mubarak tinha tal status. Até ele estava sujeito, legalmente, a ser punido pela
Justiça. O novo líder criou para si uma blindagem jurídica que torna legal, por
definição, qualquer atitude que venha a tomar – e isso vale também, reitero,
para os que fazem a Constituição. O partido da Irmandade e outros grupos
religiosos ainda mais radicais formam uma folgada maioria.
“Ah, mas se a maioria votou em
partidos religiosos, então quer uma sociedade sob o tacão da religião”. É,
talvez. Nem por isso essa ditadura é aceitável. Não segundo os meus valores ao
menos. Fosse assim, os regimes fascistas teriam sido apenas uma outra expressão
da democracia. Um governo de maioria não define uma democracia – até porque ela
pode estar satisfeita e até se sentir representada pelos tiranos. A democracia
se caracteriza por permitir que a minoria exerça a divergência.
Ataque fascistoide
Mais de duzentas pessoas
saíram feridas dos confrontos. Atenção! O governo da Irmandade não se contentou
em mobilizar as forças de segurança para evitar os excessos. Nada disso! O
grupo pode mobilizar facilmente uma massa de milhares, até de milhões. E foi o
que fez. Convocou suas milícias, que desceram o sarrafo nos descontentes. Três
conselheiros de Mursi se demitiram em sinal de protesto: Amir el Leithi, Seif
Abdel Fattá e Ayman al Sayad.
Havia cerca de 300
manifestantes acampados nas imediações do palácio presidencial. Os militantes
salafistas e da Irmandade, armados de punhais, navalhas e pedras, chegaram.
Começou a pancadaria. A própria Irmandade pediu depois que seus partidários se
recolhessem. Aí foi a vez da força armada regular: três manifestantes foram
mortos a tiros na madrugada (hora local) desta quinta.
A Irmandade vinha evitando
convocar seus bate-paus para a praça justamente para evitar confronto. Depois
do cerco promovido ao palácio presidencial na terça, o grupo mudou de ideia.
Deu nisso aí.
“Conspiração sionista”
Se alguém está interessado em
saber o que andam pensando aquelas flores da “Primavera árabe”, basta ver o que
declarou ao jornal Al Ahram, informa o El País, um representante do partido
Liberdade e Justiça, que é a expressão partidária da Irmandade: trata-se,
segundo ele, de uma “conspiração contra o presidente eleito”. Um advogado
ligado ao grupo fez uma denúncia formal à Justiça, acusando líderes da oposição
laica de participar de uma “conspiração sionista”. Entre esses “conspiradores”,
estariam Mohamed el Baradei, Hamdin Sabahi e Amir Musa.
Encerrando
As Forças Armadas egípcias
dependem do dinheiro que recebem regularmente dos EUA. É pouco provável que
Mursi e a Assembleia optem agora por uma ditadura religiosa. Mas é para isso
que caminha o Egito – e é esse o destino da “Primavera Árabe”. A razão é
simples: não se constroem democracias se não houver democratas, não é? No
Egito, eles constituem a minoria das lideranças políticas e a minoria do povo.
“Se a maioria quer ditadura
religiosa, Reinaldo Azevedo, quem é você para contestar?” Eu? Não sou ninguém,
ué. Sou apenas alguém que não aceita chamar uma força totalitária de agente da
democracia. E também me reservo o direito de não acreditar na conversão da
Irmandade à democracia e de recusar suas flores do mal.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 06-12-2012
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